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Delírio tropical em Inhotim

Inhotim, a 60 km de Belo Horizonte, é uma Bienal gigantesca no meio da floresta, onde arte contemporânea, palmeiras, oiticicas e orquídeas se fundem

Por Paulo Vieira
Atualizado em 9 set 2021, 23h04 - Publicado em 17 set 2011, 19h14

Se você precisa de algum argumento para conhecer Belo Horizonte, ele não está em Niemeyer, embora começasse ali, na capital mineira, com a Igreja de São Francisco e outras obras à beira da Lagoa da Pampulha, a dobradinha com JK que culminou em Brasília. Também não dá para dizer, mesmo com todo o oba-oba em torno disso, que os botecos e o Mercado Central de BH justificam uma ida à cidade. Para uma viagem de fim de semana com essas passagens baratas de hoje, eu preferiria o Rio de Janeiro; e, se eu morasse no Rio, tocaria para Salvador, Recife, quem sabe até São Paulo.

Tudo isso até conhecer Inhotim.

Era uma quinta-feira normal de abril, e tudo era deslumbramento. Um maluco abria fogo em uma escola em Realengo nesse mesmo dia, fazia do Rio uma Columbine – e eu, com duas filhas pequenas, não saía do embotamento, do maravilhamento que aquela fazenda transformada em jardim botânico e centro de arte contemporânea impingia. As lágrimas que mal vi no rosto de Fátima Bernardes e de todas as apresentadoras que esticavam seus telejornais até quase as 10 daquela noite me faziam pensar nas crianças – principalmente nas minhas. Eu queria que Maria Vitória e Maria Eduarda pudessem estar em Minas vendo comigo as muitas instalações, as palmeiras, as costelas-de-adão, o tamboril centenário – a maior árvore da coleção de milhares da propriedade rural hoje transformada no Instituto Inhotim.

Guardadas as proporções, Inhotim, a meros 60 quilômetros de Belo Horizonte, tem tudo para ser um Cristo Redentor, um Elevador Lacerda, uma Catarata do Iguaçu. O lugar será em alguns anos uma imagem imediatamente reconhecível do Brasil. Com 100 hectares de área visitável, é o maior centro de arte contemporânea a céu aberto do mundo. Seu jardim botânico, que teve áreas executadas seguindo pitacos de Burle Marx, tem a maior coleção planetária de palmeiras, com cerca de 1 500 espécies, e uma muito grande de orquídeas, com 334 espécies. Mas isso não explica tudo. Inhotim não se traduz por esses recordes.

O lugar não é nenhum jardim de esculturas na escala a que estamos acostumados. Há até alguns bustos (sem cabeça) nas alamedas, mas o principal está exposto em 17 pavilhões imensos que surgem por detrás das árvores, integrados a lagos e espelhos d’água. Outras 20 obras soltas pelo terreno podem ter o tamanho de três Fuscas. Pense em uma Floresta da Tijuca com prédios do porte do MuBE, de São Paulo, ou do MAM carioca, cada qual para um dos artista. Inhotim é como se a Chácara do Céu, do Rio, ou a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, de São Paulo, tivessem 500 vezes seu tamanho e, em vez das cadeiras dom João e das gravuras de Debret, houvesse arte contemporânea em seu interior.

Felizmente, Inhotim também não tem o delírio curatorial de uma Bienal de São Paulo no meio da mata. Você não vai ver pichações nem corredores lamentavelmente vazios. Ali, tudo o que existe para chocar, impactar, sensibilizar, incomodar – o que é, ou deveria ser, afinal, a agenda das artes visuais há uns 110 anos – ganha uma inesperada dimensão encantadora, maravilhosa. Por vias tortas, a tal ideia da dessacralização da arte, perseguida desde que Duchamp levou um urinol à galeria, morre e é sepultada em Inhotim. As paredes de azulejos falsos e as entranhas agigantadas do pavilhão da artista Adriana Varejão são apenas lindas – talvez ela as quisesse agressivas; o trator do tamanho de um caminhão-cegonha que trucida uma árvore, obra do americano Matthew Barney, tem a violência da cena diluída pela beleza do prédio onde fica, que lembra um disco voador que aterrissou na mata. Até a pobreza do Pelourinho dos anos 1970, com suas prostitutas nuas e seus cães pestilentos das fotos do carioca nascido na Espanha Miguel Rio Branco, emana alguma beleza – também com a luz daqueles retratos e o prédio superlativo dedicado ao artista…

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Não há ismo que resista à beleza de Inhotim.

E é por isso que eu não parava de pensar nas minhas filhas. Não fazia uma semana que eu havia estado no supostamente moderníssimo Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, para com elas ver uma individual bacana de Vik Muniz. Cada vez que tocavam (ou tentavam tocar) em uma das obras, lá vinha o segurança. Marcação cerrada. Recomendações. Encheção de saco. Saí de lá tentando entender por que insisto em levar minhas meninas a museus e galerias de arte. A que as crianças vão associar essas visitas futuramente?

Então, o que passava pela minha cabeça ao curtir todos os objetos vermelhos que compõem a “casa” vermelha da instalação Desvio para o Vermelho, de Cildo Meireles, em Inhotim, era: elas tinham de estar aqui. Abrir aquela geladeira encarnada e mexer nos frascos de ketchup era como que me vingar, em nome delas, da ida ao Tomie Ohtake. No pavilhão dedicado às Cosmococas, de Hélio Oiticica, então, só dava as meninas. Eu havia, a meu modo, me transformado nelas ao me deitar em uma das redes do redário e ouvir Hendrix no escuro; ao pisar como Neil Armstrong naquela deliciosa camada de espuma alta, chutar bexigas e ouvir o agudo de Yma Sumac; ou ao molhar os pés na grande piscina (tem gente que nada lá), ao som da Banda de Pífanos de Caruaru. Sobre as linhas de cocaína que o artista insere nas projeções em todos os ambientes, eu não teria o que dizer. Elas perderam toda a substância explosiva na luxúria e no playground de Inhotim.

É claro que nem tudo é interação, nem tudo são piscina e bexigas. A obra sombria de Barrio, que termina em uma bicicleta abandonada no meio de um monte de sal, foi feita durante (e para) a ditadura. Não se deve tocá-la. O enorme macaco hidráulico que pressiona duas vigas de madeira contra as paredes de uma galeria exige algum esforço cognitivo para ser lido: a ideia do artista americano Chris Burden é, literalmente, destruir o ambiente em que ele colocou a obra. Aí entram em cena os monitores para acudir o visitante. Não se acanhe em perguntar, perguntar e perguntar. São cerca de 100 garotos e garotas, quase todos de Brumadinho, cidade de 34 mil habitantes que foi transformada pelo instituto.

Desde que foi aberto ao público, em 2006, Inhotim se expande. Para ver o que está ali, são necessários dois dias inteiros, talvez três. Alguns de seus pavilhões têm exposições temporárias, trocadas bienalmente. Mais um está em obras para abrigar, até o fim deste ano, trabalhos de mais figurões (Lygia Pape, Mario Merz, Susan Hiller, entre outros). Há planos para uma pousada-butique na propriedade – e outras no entorno. Hoje são dois restaurantes, um deles, o Oiticica, um bandejão com saladas deliciosas; lanchonetes se multiplicam. Não param de chegar palmeiras e outras árvores em caminhões enormes. Aos 100 hectares visitáveis soma-se uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com outros 145 hectares.

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Dinheiro não parece ser problema para o criador do instituto, o mecenas Bernardo Paz, figura que, em razão de sua aparência, um combativo jornalista de São Paulo já chamou de mistura de Oswaldo Montenegro com o ator e cantor country Kris Kristofferson. Segundo dados do instituto, apenas 25% dos R$ 2 milhões que Inhotim custa por mês são bancados por patrocinadores e público pagante. O resto sairia do bolso de Paz ou de fontes não reveladas. Não há nenhuma indicação de que as generosas torneiras vão secar, mas, por via das dúvidas, se eu fosse você, tomaria o avião para Belo Horizonte neste fim de semana.

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