Cusco: coração de pedra
Cusco, no Peru, eclipsada pela vizinha Machu Picchu, mostra como as construções, o engenho e a tenacidade incas sobreviveram aos espanhóis
É difícil encontrar quem não tenha ouvido falar de Machu Picchu. A cidade sagrada dos incas está no nosso imaginário como um daqueles míticos paraísos perdidos. Junto com o Cristo Redentor, o Taj Mahal, a Muralha da China, o Coliseu e outros, ela hoje figura na nova lista das Sete Maravilhas do Mundo. O lugar, que neste ano celebra o centenário de seu “achamento”, é a dor e a delícia da vizinha Cusco. Dor porque Cusco vive – e viverá eternamente – à sombra de Machu Picchu; delícia porque essa bela cidade peruana, capital incaica e depois metrópole colonial espanhola, ganha notoriedade e fluxo turístico por ser a base das excursões a Machu Picchu. Viajantes do mundo todo se encontram na cidade e acabam por descobrir seus encantos. Não sem antes saber que os espanhóis chegaram ali em 1534 e em menos de 40 anos deram cabo do Império Inca. Os colonizadores iniciaram o trabalho sujo derrubando os templos religiosos da atual Plaza de Armas (a Praça da Sé das cidades de colonização espanhola) e erguendo em seu lugar igrejas católicas. Mas a tenacidade inca resistiu. Em algumas das mais lindas construções que se veem hoje, a arquitetura europeia repousa na solidez das pedras incas, bases tão fortes que os espanhóis não puderam derrubá-las por mais que tentassem.
É por isso que grande parte das belezas de Cusco não está na superfície, mas escondida em segundos pisos e camadas. Como em tantas igrejas romanas erguidas sobre a carcaça de templos pagãos, sob as mais famosas joias arquitetônicas espanholas de Cusco há sempre as irremovíveis pedras incas. Estão lá como que para marcar território ao longo dos séculos ou milênios com sua eloquência muda. Excelente exemplo é o Palacio Arzobispal, na Calle Triunfo, hoje sede de um museu de arte, construído sobre as fundações do antigo palácio do imperador Inca Roca. Nas paredes da construção está a célebre pedra de 12 ângulos, mostra máxima do gênio da engenharia incaica que se valia apenas do encaixe perfeito de pedras gigantescas. A técnica permite que as paredes estejam em pé há mais de 700 anos. A engenhosidade daqueles habitantes também pode ser conferida nas fontes e nas pedras do Templo Qoriqancha, na esquina das avenidas El Sol e Zetas, que foi transformado pelos espanhóis em um convento e hoje funciona como museu.
Mirando alto
Uma primeira aclimatação à cidade, que está a 3 300 metros do nível do mar, com o ar rarefeito e os enjoos que isso provoca em muita gente, pode ser do alto do mirante da estátua do Cristo Redentor – chamado por ali de Cristo Blanco. De lá você vê o vale inteiro que determina os limites da cidade. Nem pense em caminhar os 40 minutos de subida pela Calle Pumacurco e opte por um táxi (sairá cerca de 10 nuevos soles, o equivalente a R$ 6). Mesmo a olho nu, perde-se a conta de quantas igrejas a cidade abriga, uma mais imponente que a outra – era preciso afirmar, com toda a evidência possível, a força do colonizador. Após a vista panorâmica, a descida do Cristo Blanco em direção à cidade pode ser feita pelas ruas e plazoletas de San Blas. O bairro é bastante turístico, mas um olhar mais cuidadoso vai revelar alguns tesouros escondidos. Mirando o alto das construções, você não só contempla a bela arquitetura local mas descobre que nos andares superiores estão os cafés mais aconchegantes e os restaurantes mais deliciosos. De varandas com visão para as luzes da cidade, qualquer comida fica mais saborosa. Mas San Blas guarda outros segredos. Quando passar pelas grandes galerias de artesanato concentradas na Cuesta de San Blas, não se limite a olhar superficialmente as peças, que, a princípio, parecem todas iguais. Nos fundos estão as melhores lojas. Dê atenção especial à Galeria Puma Wasi, na primeira quadra da Calle Triunfo, e à galeria sem nome nos fundos da Catedral Basílica da Plaza de Armas. Nas prateleiras do fundo, escondidas por mantas e cabides de blusões, estão as peças únicas, as lindas esculturas de pedra, as máscaras incas mais originais.
Indiana Jones
Em muitas lojas se encontram antiguidades, mas as relíquias do período incaico e dos povos anteriores só podem ser observadas nos museus locais. O Museo Inka é o mais famoso da cidade, mas o acervo tem menos objetos que murais explicativos. Melhor cacifar um bom livro de história numa livraria da Plaza Regocijo e visitar o Museo de Arte Precolombino, na Plaza Nazarenas, onde uma grande coleção de peças milenares exibe as primeiras ferramentas de pedra, utensílios, bem como artigos decorativos e joias de ouro e prata. Neste mês, Cusco deve começar a receber a primeira remessa de objetos que foram encontrados em Machu Picchu há 100 anos e que estão em poder da Universidade Yale, nos Estados Unidos. São mais de 40 mil artefatos, incluindo joias, ossadas e cerâmica.
Outro lugar para conhecer a engenhosidade inca são as ruínas de Sacsayhuamán, a 2 quilômetros de Cusco, onde se supõe que uma grande arena cercada por muralhas era utilizada como um auditório em celebrações religiosas. O encaixe perfeito das pedras com mais de 8 metros de altura e 350 toneladas até hoje intriga pesquisadores. Em todo 24 de junho se celebra ali o Inti Raymi, a Festa do Sol. A data coincide com o solstício de inverno, a partir do qual o Sol volta a se aproximar do Hemisfério Sul da Terra – os dias começam a ficar, então, paulatinamente mais longos. Se tiver tempo, sua criança interior vai adorar as resbalosas, pedras que servem de escorregador, e encarnar um Indiana Jones nos túneis subterrâneos de Sacsayhuamán. A poucos minutos de caminhada na mesma estrada estão as ruínas de Qenqo, um centro para rituais, Puca Pucara, uma fortaleza, e Tambomachay, o templo das águas. De volta à Plaza de Armas, não há controvérsia: ela é linda, com a Catedral Basílica e a Igreja da Sagrada Companhia de Jesus. Hoje, o lugar está rodeado de balcões espanhóis e vive repleto de turistas do mundo inteiro. Bastam algumas pequenas caminhadas afastando-se do centro para levar o viajante a um outro lado de Cusco, talvez nem tão fotogênico mas muito interessante. Descendo a Avenida El Sol estão os bairros de Santa Ana e Coripata. Ali, em pequenas portas esmagadas entre minimercados e farmácias, estão velhas senhoras vendendo porquinhos-da-índia (chamados de cuy) assados com batatas, espetinhos de churrasco de alpaca e chicha, uma bebida de milho fermentado. Ali também ficam os artesãos, com seus tecidos de cores vibrantes, e os padeiros, que deixam discretos cartazes na entrada de corredores. Seguindo você chega a pátios onde são vendidos pães chuta, típicos do Peru, e também pães doces enormes, que mais parecem bolos de casamento.
É bastante recomendável andar sem muita orientação pelas ruas de pedra dos bairros menos turísticos da cidade. Você talvez até se deixe hipnotizar pelos muitos toritos que ornamentam o telhado das casas. Eles são colocados pelos moradores como amuletos que representam a esperança de uma boa safra (no caso, a multiplicação do rebanho). Se tem uma origem claramente ancestral, o objeto traz também a cruz de Cristo. Em toda a América do Sul, e não só, os valores do conquistador se misturaram aos dos antigos ocupantes. Em Cusco, os toritos, as missas católicas frequentadas por peruanos de evidentes traços indígenas e os muros incas atestam que, se essa mistura não foi menos violenta que o habitual, gerou uma cidade de inusitada e enorme beleza.
Um centenário a celebrar
A cidade histórica peruana completa cem anos em 2011
Em 1911, o arqueólogo americano Hiram Bingham chegou à Cidade Sagrada dos incas guiado pelo indiozinho Melchor Arteaga. A estupefação e a perplexidade de Bingham não devem ter sido muito maiores que a de milhares de turistas que anualmente visitam as ruínas vindos da vizinha Águas Calientes ou andando pelos caminhos de pedra da chamada Trilha Inca, em dois ou quatro dias de viagem. É que a beleza explícita e insofismável de Machu Picchu chega a ser excessiva, exuberante, e isso foi reconhecido amplamente com sua eleição, em 2007, para uma das Sete Novas Maravilhas do Mundo. Patrimônio da Humanidade segundo a Unesco, Machu Picchu tem muito a celebrar neste centenário. Estão prestes a retornar ao Peru mais de 46 mil artefatos que foram levados de lá com Bingham e seus seguidores e que há tempos faziam parte do acervo da americana Universidade Yale. Isso, no entanto, não encobre a constante ameaça que ronda esse patrimônio delicado. Em janeiro de 2010, houve deslizamentos, e 2 mil turistas (300 brasileiros) tiveram de ser resgatados por helicópteros em Águas Calientes. Em janeiro deste ano, cerca de 20 grupos que faziam a Trilha Inca precisaram alterar a rota por causa de mais deslizamentos.
Desde a década passada há controle do fluxo de visitantes à Trilha Inca – são 500 por dia – e à montanha de Wayna Picchu, dentro do parque de Machu Picchu, onde 400 pessoas são admitidas diariamente. O turismo de massa estava comprometendo os caminhos calçados e as edificações de pedra, que conseguiram resistir por vários séculos às forças da natureza. Para fazer a Trilha Inca tradicional é necessário reservar com um mínimo de dois meses de antecedência. Outras trilhas, como a Salkantay, que contorna a montanha pelo lado oposto ao da Trilha Inca, ou a expedição Inca Jungle, que inclui um longo trecho de bicicleta, podem ser contratadas de um dia para outro. Os preços para qualquer um dos passeios, que são interrompidos apenas em fevereiro devido às chuvas, variam de US$ 300 a US$ 520. Tours de dois dias que incluem hospedagem, trem e ônibus saem desde US$ 120.
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