Quando desci do trem na cidade de Ponferrada, vindo de Madri, depois de quase sete horas de viagem, tudo que eu não tinha era uma reserva de hotel. O que eu tinha eram uma mochila, um bastão de trekking e a fase que ouvi de um andarilho veterano: “Busque a hospitalidade”. Resolvi colocar a coisa em prática assim que avistei duas pessoas que levavam apetrechos iguais aos meus. Ela, Cristina, de Pamplona. Ele, Sérgio, de Múrcia, ambas cidades espanholas. Naquela noite de agosto, véspera da minha estreia no Caminho de Santiago de Compostela, acabamos os três dividindo o mesmo quarto de hotel.
No dia seguinte, Cristina e Sérgio continuaram na cidade, mas eu não tinha tempo a perder. E, assim, às 7 da manhã, me despedi dos meus breves amigos. Eu estava prestes a começar uma jornada de 210 quilômetros, pouco mais de um quarto dessa que é, talvez, a rota de peregrinação mais famosa do mundo. Fazer o Caminho inteiro, desde Saint Jean Pied de Port, no sul da França, sempre esteve nos meus planos, mas, como acontece a tanta gente, é difícil conseguir tempo para isso. (Também temia pelo meu joelho, mas isso fica entre nós. É que percorrer 800 quilômetros, caminhar uma distância maior que a de São Paulo a Florianópolis assusta!) O trecho que eu estava prestes a trilhar, que faz parte do Caminho Francês, não é o único. Existem pelo menos cinco rotas partindo de outros lugares da Espanha e de Portugal, mas que convergem sempre ao mesmo ponto, a cidade de Santiago de Compostela, na Galícia, lugar onde estaria enterrado o apóstolo Tiago. Reza a lenda que no ano 813 os restos mortais do apóstolo teriam sido encontrados por um eremita. A notícia se espalhou pela Europa e logo a região virou lugar de peregrinação. No século 9, os fiéis passaram a ter apoio dos cavaleiros templários, ordem ligada à igreja responsável por proteger os peregrinos cristãos.
Mas, se o que moveu os primeiros andarilhos a caminhar até Compostela foi a fé, nas últimas décadas isso mudou um pouco. É cada vez mais comum encontrar adeptos de outras religiões, ateus ou até gente que simplesmente gosta de belas paisagens e de topar com gente do mundo inteiro – eu! Tanto que voltei a Santiago em uma segunda ocasião porque queria fazer o trecho até Finisterra, o ponto zero do Caminho – o fato de que parte do percurso é feito beirando o mar, com restaurantes que servem polvos divinos, foi um pretexto pouco cristão, reconheço.
Um passo de cada vez, diz o ditado. Eu falava sobre o início da minha jornada em Ponferrada, lembra? Saindo do hotel fui em direção à principal construção medieval da cidade, o Castelo dos Templários, que naquela hora ainda estava fechado, e passei a seguir as setas amarelas e placas com a concha de vieira, o símbolo do Caminho. Depois de andar uma hora e meia sozinha, conheci um grupo no qual estava Tony, um norueguês de 69 anos que fazia aquele percurso pela terceira vez. “O Caminho sempre é diferente porque as pessoas não são as mesmas. Você não é a mesma a cada ano.” Naquele primeiro dia foram 24 quilômetros que terminaram em Villafanca del Bierzo. Saldo do percurso: cansaço e um pouco de dor nas pernas. Eu, Tony e seu grupo fizemos check-in no albergue e saímos para comer. O restaurante se chamava La Puerta del Perdón e fomos de Menu do Peregrino. Não sei se foi minha fome de leoa, mas aquele jamón com pimentão de entrada, seguido de um fango assado com limão, estavam divinos!
A minha primeira bolha na sola do pé apareceu no fim do segundo dia depois de fazer a puxada subida até o vilarejo O Cebreiro. Lá tratei da ferida usando a técnica peregrina: furei a pele com agulha esterilizada e deixei uma linha de costura dentro para drenar. Na manhã seguinte, espalhei vaselina entre os dedos antes de calçar a meia e meti o pé na estrada. Dessa vez, meu companheiro foi um carioca, o Érico. Por sugestão de amigos que encontramos no albergue, fizemos um desvio de 27 quilômetros para conhecer o Mosteiro de Samos. Construído no século 7, o lugar é um complexo de corredores imensos e torres incrustado no meio da montanha. Dormimos no albergue dali.
No quarto dia, ao chegar à vila de Ferreiros, coloquei meu saco de dormir em um bosque e só fiz relaxar. Isso porque no dia seguinte eu, Érico e a colombiana Thaís partiríamos às 6h20. Depois de oito horas andando, chegamos podres em Palas del Rey, onde resolvemos nos presentear com um hotelzinho e, aleluia, nada de roncos coletivos.
No quinto dia caminhei até Arzúa, a 40 quilômetros de Santiago. Ali o número de andarilhos aumentou bastante. Havia muitos grupinhos que interagiam bem menos que no início da viagem.
Eu não tive companhia em muitos momentos do Caminho. E foi ótimo! Nessas ocasiões, aproveitei para pensar na vida, ouvir o vento, cantar bem alto, conversar com as árvores. Parece coisa de gente louca, mas todos com quem cruzei dizem ter feito a mesma coisa.
No sétimo dia, até Arca del Pino, o percurso ficou mais leve. Notei que as pessoas estavam menos preocupadas em andar rápido e eu também desacelerei. Saí do albergue na manhã do oitavo dia com os israelenses Itay e Yonatan. Animados, cantávamos músicas da Marisa Monte, que eles sabiam de cor. Juntos, alcançamos o Monte do Gozo, nome sugestivo: é o lugar onde se avista Santiago, que está a 5 quilômetros dali.
Na manhã seguinte, entrar em Santiago de Compostela foi um certo choque: muitos carros, buzina, gente. Quando dei de cara com a Praça do Obradoiro, a da catedral, recebi os primeiros cumprimentos. Fui direto até o Escritório do Peregrino para pegar o diploma a que tinha direito. Dali entrei na concorrida missa que acontece todos os dias ao meio-dia e reencontrei “velhos” conhecidos de estrada. Eu tinha realizado um sonho de menina e, naquele momento, prometi a mim mesma que voltaria para fazer outro trecho do Caminho, como de fato voltei.
Finisterra, o epílogo
Para muitos peregrinos, Santiago de Compostela não é o ponto final da jornada. O quilômetro zero do Caminho fica na costa oeste da Galícia, em Finisterra. alguns preferem fazer o percurso de ônibus, mas perdem a beleza dos cânions e das montanhas galegas. Quem encara os 90 quilômetros, ideal para ser percorrido em três dias, ganha também um diploma de peregrino. Os dois primeiros dias são os mais puxados, com subidas íngremes e a possibilidade de chuvas, comuns na região. Mas, no terceiro dia, o alento é ter o mar como companhia. Come-se muito bem no percurso. Antes da ponte que leva ao povoado de Olveiroa, recobrei as forças com um pulpo a feira (polvo preparado com pimentão-doce e azeite) do refuxio da ponte. Ao chegar ao Farol de Finisterra, é praxe queimar as roupas usadas na peregrinação, maneira de simbolizar uma renovação espiritual. Eu não estava muito em condições de fazer isso, mas, com essas rebajas espanholas, prometo pensar nisso na próxima.
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