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Absurdo

Os cenários lunares do Atacama, as flores do deserto em La Serena e até o enorme duty free de Iquique fazem a gente se perguntar: o que é isso, meu Deus?

Por Talita Ribeiro
Atualizado em 16 dez 2016, 09h13 - Publicado em 13 set 2011, 19h15

Fui recebida por demônios, penso, ao saber que as cruzes no alto das casas de barro da vila de Machuca foram feitas para espantar redemoinhos de vento. Os pés de vento são considerados sinais malignos pelas pessoas que vivem nesse povoado a 4 mil metros de altitude. Estava voltando a San Pedro de Atacama, a base dos turistas que exploram o deserto do Atacama, e não só vi diversos redemoinhos como presenciei a sua influência sobre o povoado, que ficou sem luz e quase intransitável.  Foi o meu primeiro contato com o poder da Pachamama, como os atacamenhos chamam a Mãe Terra, no deserto mais seco do mundo. Não foi a recepção mais acolhedora que tive, mas ela serviu para deixar claro que ali quem dava as cartas era essa natureza bruta e avassaladora. E apaixonante.

O Atacama está a 1 300 quilômetros de Santiago, entre o Oceano Pacífico e a Cordilheira dos Andes, numa superfície de mais de 106 mil quilômetros quadrados, que vai de Copiapó, no norte do Chile, à fronteira com o Peru. Boa parte dessa área é formada por deserto arenoso e rochoso, cujo solo, extremamente ressecado, é comparado ao do planeta Marte. Para completar o cenário, ele abriga mais de 150 vulcões, dos quais dois estão ativos – o Lascar, um desses, pode ser escalado – e três em semiatividade. Mas é um vulcão inativo que marca a paisagem e as fotos dos turistas: o Licancabur, que tem mais de 5 mil metros de altura e é considerado sagrado pelos atacamenhos. “Não é à toa que Licancabur significa algo como “pai da gente”, diz o guia Patrício Ortega. “Se estou passeando ou quieto no povoado, ele está sempre presente, observando.”

Patrício, assim como muitos dos 6 mil habitantes que vivem em San Pedro, saiu de um povoado próximo a Temuco, no sul do país, para tentar a sorte nas minas do norte. “É aqui que está a riqueza do país, o cobre. O Chile perdeu boa parte da Patagônia para a Argentina só para poder conquistar essa região, que era da Bolívia”, conta, explicando sinteticamente a Guerra do Pacífico, que garantiu aos chilenos, em 1883, as províncias de Antofagasta (onde está San Pedro) e Tarapacá, que pertencia ao Peru. Ortega disse que o risco de acidentes, como o dos 33 trabalhadores presos desde 5 de agosto na mina de San José, ali mesmo no Atacama, é permanente. E por isso ele preferiu explorar outro “potencial do norte”, o turismo.

E que potencial. O primeiro passeio que fiz na companhia de Patrício e mais três brasileiras foi à Quebrada de Kari, na Cordilheira de Sal, antigo lago cujo fundo se levantou há milhões de anos, em razão dos mesmos movimentos na crosta terrestre que deram origem à Cordilheira dos Andes. O ponto de partida da caminhada é o mirante, de onde se avista o Salar do Atacama e de onde você grava na retina as cores do deserto, os tons terra, os brancos, os azuis. Percorremos a encosta e descemos 70 metros por uma duna, entre tombos e risadas. Depois seguimos o leito seco de um rio, parando para observar as rochas e ouvir sobre os minerais que as formam, como o sulfato de cálcio.

Caminhar é uma das melhores maneiras de conhecer e sentir o deserto. Por isso, na tarde daquele mesmo dia, repeti a dose, dessa vez no famoso Valle de la Luna. O nome não exagera. Suas formações lembram mesmo a superfície lunar, e para lá vão muitos turistas ver o pôr do sol. O problema é que eles param, quase sempre, no mesmo ponto, em que se avista o anfiteatro formado por uma sequência de montanhas. Assim, o que deveria ser um momento único torna-se coletivo, às vezes coletivo até demais. Para fugir disso, alguns hotéis e guias particulares organizam caminhadas que cruzam o vale, atravessam dunas, passam por minas abandonadas, descortinam paisagens loucas em meio a um silêncio quase absoluto, cortado apenas pelo vento e pelos passos na areia. Na hora do pôr do sol, ele vem com a visão do Vulcão Licancabur. E surgem as cores. Laranja, depois vermelho, agora rosa, lilás, roxo, azul.

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À noite, todos voltam aos hotéis ou ao centrinho de San Pedro, onde não existem bares nem baladas. Por isso, alguns restaurantes na calle principal, a Caracoles, viram pontos de encontro. O mais conhecido é o Café Adobe. É lá que, a partir das 23 horas, os atacamenhos e turistas combinam festas ao redor de fogueiras ou ficam sabendo de raves com DJs no Valle de la Muerte. Sobre esse vale, que fica bem perto do La Luna, cabe dizer que há duas versões para o nome macabro. A primeira diz que os atacamenhos não ouviram bem quando o arqueólogo francês Gustavo Le Paige, que explorou a região na década de 1950, chamou o lugar de Valle del Marte. A segunda sustenta que Le Paige encontrou muitos esqueletos humanos e deduziu que velhos e doentes iam para lá morrer.

Outro restaurante com clima de bar (e paquera) e com um dos melhores cardápios da cidade é o La Estaka, que no almoço serve um bom menu executivo, com entrada, prato principal e sobremesa, desde $ 6 000 (equivalente a R$ 20). Há também o Blanco, de cozinha contemporânea, com várias combinações agridoces. Para comida típica chilena, vá ao romântico La Casona, onde a trilha sonora é de love songs, ou ao Paacha, do Hotel Kimal, que tem ambiente bem intimista. Mas não se estenda muito, já que o dia começa cedinho no deserto – às vezes, antes de o sol raiar.

Acordar às 4h30 não é fácil, mas vale muito a pena para conhecer uma das atrações mais surpreendentes do Atacama: os Gêiseres del Tatio, a 99 quilômetros de San Pedro. Para ir até lá, é preciso se preparar bem. Descanse e vista-se – não pare de se vestir. Eu me senti como uma cebola: quatro blusas, uma jaqueta, duas calças, duas meias, luvas, cachecol, touca. Tudo isso era pouco para os 4 300 metros de altitude do Tatio – bico! – e temperatura de 16 graus negativos. Nem mesmo o vapor e os jatos d’água quente (a até 80 graus) conseguem amenizar o clima polar. Madrugar é preciso, porque a água é lançada de buracos e falhas no solo somente ao amanhecer, a partir das 6 horas, a cada 20 minutos, em média, e a uma altura de até 12 metros. Impressionante.

Antes de retornar a San Pedro, as agências que realizam o tour servem um café da manhã, mas é melhor pegar leve, já que parte da estrada é de terra e a mudança brusca de altitude pode causar mal-estar na volta também – San Pedro está a “apenas” 2 400 metros de altitude. E você não vai deixar de experimentar o churrasquinho de lhama em Machuca, não é? A parada no povoado é estratégica: ir ao banheiro e fotografar as dez casinhas, quase todas abandonadas, e a igrejinha em cima do morro. Se não quiser comer a carne do animal andino, há também empanadas de queijo à venda.

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Outro passeio contemplativo feito de carro é até o Salar do Atacama, combinado com as lagunas Miscanti e Miñique, que ficam dentro da Reserva Nacional dos Flamingos e, como o nome dá a entender, abrigam esses pássaros pernaltas de penas avermelhadas. No salar, impressionam as pedras de sal a perder de vista, que exigem um bom calçado do visitante, pois cortam os solados mais frágeis de borracha. Já nas lagunas, o azul intenso contrasta com as montanhas em tons bege e cinza. Vá agasalhado, pois os ventos podem ser bem fortes. Na ida há uma parada em Toconao, um povoado com menos de mil habitantes, com casinhas feitas de pedra vulcânica e lojinhas de artesanato. E na volta, nos tours de agências, há almoço em Socaire, vilarejo de 400 almas onde é difícil não se viciar nos pratos à base de quinua e outros ingredientes da culinária local.

Feito esses dois passeios, mais o Valle de la Luna, fica faltando apenas boiar na Laguna Cejar para completar o pacote de tours “obrigatórios” de quem visita pela primeira vez o deserto. Essa laguna verde-esmeralda é chamada de “Mar Morto sul-americano” por ter água com alta taxa de salinidade. Quem mergulha ali não afunda. Mas encarar a água fria não é para qualquer um. Garanto que a experiência de boiar sem esforço vale o choque, mas saiba que seu cabelo, pele e biquíni ou sunga ficam repletos de sal. Tente depois dar uma esticadinha até Los Ojos e Lagunas de Tebenchique. Los Ojos são um conjunto de buracos onde há água doce para se banhar; já a laguna abriga flamingos e outros pássaros e é um bom ponto para ver o sol se pôr. Os hotéis de luxo não costumam levar seus hóspedes até Tebenquiche por considerar o destino demasiado “popular”. Popular e lindo.

Em compensação, esses hotéis luxuosos, que começaram a se instalar no Atacama em 1999, emprestam bicicletas e cavalos para seus clientes fazerem passeios próximos, como a Pucará del Quitor, reconstituição de uma cidadela inca do século 12. Têm também tours exclusivos e mimos em passeios clássicos, como às Termas de Puritama, piscinas naturais de águas quentes em meio ao deserto. Ali é montando um pequeno banquete, com vinho. Se você não pode pagar por uma estadia de luxo, contrate um guia particular.

Com o guia, você poderá conhecer, por exemplo, o Salar de Tara. A 100 quilômetros de San Pedro e a 4 300 metros de altitude, tem esculturas de pedra feitas pelo vento e pela erosão, como os Monjes de la Pacana, imensos pilares sobre areia, ou o Castelo de Tara, esculpido em rocha pelo tempo. Outro destinão é o psicodélico Valle del Arco-Íris, onde montanhas de rocha de várias cores formam mais uma paisagem surreal.

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Mas não é só entre montanhas e dunas que o Atacama apaixona. Em razão da altitude, da baixa umidade do ar e da pouca luminosidade artificial, o céu dessa região é um dos mais limpos do mundo. Tanto é que o principal projeto de astronomia do planeta está sendo desenvolvido ali, por cientistas de quatro continentes. O Atacama Large Millimeter Array (Alma) é uma base que irá contar com um radiotelescópio, formado por 66 antenas que enviarão ondas ao espaço e depois serão interpretadas por um computador. As imagens terão dez vezes mais detalhes que as capturadas pelo Hubble. A base deverá estar pronta em 2012.

Enquanto o Alma não vem, é possível olhar mais de perto as estrelas e aprender que elas podem ser vermelhas, amarelas, azuis ou brancas em observatórios particulares, com telescópios convencionais, como o do Hotel Explora e o do astrônomo francês Alain Maury. Ou, então, ficar quietinho contemplando o céu e as dezenas de estrelas (na verdade meteoritos) que caem todas as noites. Vi algumas de dentro do táxi que me levou de volta a Calama, na minha despedida do Atacama. “São regalos para me conquistar a cada dia”, disse-me a motorista Maria Hermose, referindo-se ao seu namorado, o deserto. Como Maria, também me enamorei do Atacama. Se rodamoinhos são demônios, as estrelas são carinhos. E esse deserto, outra alegria.

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