“É castigo?”, perguntou-me um amigo quando eu disse que ia à Polônia. Claro que não dei bola e segui animada com as histórias que me contava Esther Sztamfater, a avó polonesa do meu ex. Ajudava também o fato de eu ter um amigo brasileiro, Michel Mestrinelli, morando por lá. O que eu não esperava era a sensação de déjà vu que senti ao chegar a Wroclaw, a primeira cidade no meu roteiro e a terceira mais importante do país. Em que ano estamos?, perguntei a mim mesma. A Polônia, tão devastada na Segunda Guerra Mundial, vai restaurando o que foi destruído. Wroclaw, mais lentamente que Varsóvia e Cracóvia, como eu iria descobrir. Com o regime comunista, que caiu em 1989, veio o padrão uniforme nos blocos residenciais, os grandes galpões. Mas é exatamente esse retrato que dá a Wroclaw e outros lugares do país um ar de nostalgia bacana, a tal ostalgie de que se fala tanto em Berlim. Uma sensação de que é possível vivenciar um capítulo perdido da história.
Mas o prédio recém-construído e bonito do meu amigo contrastava com as caixas quadradas soviéticas. Ao abrir a porta, um bafo quente. “É o aquecedor. Até o chão esquenta!”, me disse Michel, que é engenheiro e se mudou para a Polônia para trabalhar. No começo achei um exagero, depois senti o frio de outubro nas ruas e resolvi não desligar aquele negócio nunca mais.
Há dúzias de cidades pelo mundo que se autoproclamam a Veneza de alguma coisa. Wroclaw é a Veneza do Norte – eles decidiram desconsiderar São Petersburgo. A cidade, que fica no sudoeste do país, mais perto de Praga e Dresden que de Varsóvia, foi construída às margens do Rio Odra e possui 154 pontes. O rio emoldura as melhores paisagens da cidade. Enquanto eu tirava fotos, uma senhora aproximou-se e me disse algo em polonês. “Nie mówie po polsku” – “Não falo polonês” -, devolvi na única frase que consegui decorar. Ao perguntar se ela falava inglês, recebi um “nie” encabulado. Na Polônia, só os mais jovens se arriscam no inglês, embora todos se esforcem para ajudar.
O centro velho de Wroclaw foi erguido no século 10 e já esteve sob o domínio dos reinos de Boêmia, Áustria, Prússia e Alemanha. Somente em 1945, com o fim da guerra, voltou a ser da Polônia. Talvez graças a essa salada mista, os prédios da praça central tenham frontões estranhos que me lembravam árvores de Natal. No Blue Bar Café, fiquei feliz com a salada por apenas € 5 – ou 20 zlotis. A Polônia ainda não adotou o euro, o que deve acontecer a partir de 2014, e a moeda do Mercado Comum Europeu não é aceita em qualquer lugar. A garçonete que me atendeu revelou que, assim como muitos jovens da região, se mudou para a cidade para estudar e ficar de vez. É fácil entender. Mesmo no inverno, o lugar ferve. A praça tem movimento diário e os cafés e pubs ganham fregueses animados à noite. Todos bem vestidos, o que me trouxe um súbito constrangimento dos meus moletom e tênis. Em Wroclaw, confira o mercado de flores, a fonte, o palácio do século 13 e os… gnomos. São 97 esculturas (em tamanho, pode-se dizer, natural) de duendes por todo lado. Os antigos moradores acreditavam que ter uma delas em casa trazia sorte. Com o passar dos anos, os gnomos passaram a ter status de mascote e ganharam as ruas.
Existem ainda dois lugares que vale a pena conhecer. Um é o Panorama Raclawicka, um quadro gigante que se estende por paredes em 360 graus. Ele retrata uma batalha entre os exércitos polonês e russo em 1794, vencida, evidentemente, pelos anfitriões. Conheça também os afrescos de arte barroca do salão Aula Leopoldina, na Universidade de Wroclaw, que se mantiveram intactos mesmo com a chuva de bombas. Naquela noite investi cerca de € 20 para ir à Opera Wroclawska. Mas, depois de ouvir Giuseppe Verdi por duas horas, senti necessidade de “descomprimir” com música americana no Bezsennosc, um inferninho onde as canecas de cerveja de meio litro custam € 1.
Cracóvia, a Praga polonesa
Meu próximo destino, Cracóvia, a 210 quilômetros de Wroclaw, revelou-se uma cidade cênica, linda. Eu diria que, no Leste, só Praga lhe faz frente. Por outra obra divina, não se transformou em ruínas durante a Segunda Guerra Mundial. Por isso, mais de mil anos de história permanecem intactos e cinematograficamente iluminados por postes de luz dourada. A recepcionista do hotel me recebeu com entusiasmo quando soube que eu era brasileira. “É difícil ter gente do seu país por aqui.” Deve ser mesmo, já que não cruzei com nenhum compatriota durante a minha viagem. Ela me deu indicações de como chegar ao centro e ao Parque Jordan, onde há uma estátua do papa João Paulo II. Não dá para dizer que Cracóvia está, como os mais velhos dizem, “envolta num halo de santidade”, mas JP II é uma referência óbvia ao turista. Karol Wojtyla fez sua carreira eclesiástica na cidade e rezou em parte das 150 igrejas locais. A mais bonita é, sem dúvida, a gótica Igreja de Santa Maria Madalena.
Entrei no centro velho pelo lado da imponente muralha que guardava a cidade na Idade Média. Era fim de tarde e as ruas estavam cheias. Assim como Wroclaw, Cracóvia é uma cidade estudantil. Ali fica a segunda universidade mais antiga da Europa Central, em cujo “alumni” figura Wojtyla e ninguém menos que Nicolau Copérnico. Portanto, é natural que curtir a noite exija tomar decisões. No centro estão dezenas de bares e boates. É difícil escolher um, mas o lounge tranquilo com decoração retrô que elegi um tanto aleatoriamente foi na mosca. Em conversas com habitués, eu acabaria por mudar completamente o planejamento futuro – que não era, reconheço, muito planejado.
Precisei no dia seguinte acordar cedo para visitar o Monte Wawel e o bairro judeu. Do alto do morro, nos jardins do Castelo Real, vê-se uma cidade verde, cheia de parques. O castelo, construído no século 16, decaiu assim que a corte migrou para Varsóvia. Somente no século 20 passou por restauração. Depois de visitar os aposentos reais, a sala do tesouro e os túmulos de reis e de São Estanislau, o padroeiro da Polônia, desci o monte para chegar a Kazimierz. O bairro judeu, poupado pelos nazistas, chegou a abrigar 70 mil habitantes quando Cracóvia ainda não havia se esparramado. A região vem sendo reabilitada, e há ali sinagogas, cemitérios e museus. O que se vê pouco é um legítimo judeu polonês. Eles, que chegaram a ser mais de 3 milhões pela cidade durante a guerra, hoje são cerca de 50 mil. Como o comerciante David Eisener, que me explicou: “Os que sobreviveram ao holocausto preferiram ir embora da Polônia”.
A 70 quilômetros de Cracóvia está Auschwitz, cuja simples menção já dá um frio na espinha. Mas, se decidir ir, verá que é uma experiência comovente. A exposição de centenas de malas, óculos, sapatos, cabelos e documentos são a prova inconteste do horror da guerra que exterminou – somente ali – mais de 1,5 milhão de pessoas. A 3 quilômetros do primeiro campo está Birkenau. Por ali resistem alguns barracões, ruínas do crematório e os trilhos do trem que conduzia os presos. Duas em cada três pessoas que iam para lá, principalmente crianças e mulheres, eram levadas direto à câmara de gás.
Varsóvia, a miragem
Finalmente na capital, é preciso um enorme esforço de abstração para imaginar que só 25% da cidade ficou de pé depois da invasão alemã. Quem conhece Varsóvia hoje pode até pensar que nada de especial aconteceu por ali de 1939 em diante. Na recepção de meu hotel conheci a inglesa Lisa Murray, que, com dois dias de “vantagem”, decidiu me levar a ver o que ela já havia conhecido na cidade. Fomos direto à Praça do Mercado conferir o agito de artistas e turistas e das carruagens que os levam a passear. Lisa, dublando de guia, logo me contou que tudo naquela praça foi reconstruído pedra por pedra. Até mesmo as casas, idênticas às do século 17 que haviam lá. É um trabalho perfeito.
Varsóvia virou capital da Polônia em 1596 e hoje é lar de 1,6 milhão de pessoas. A cidade tem seu nome inscrito nos livros de história graças, entre outras coisas, ao pacto e ao gueto. Pacto de Varsóvia era o nome do bloco militar dos países soviéticos que se contrapunha à Otan – Deus, como essas nomenclaturas estão velhas. E gueto era o maior centro de resistência judeu na Segunda Guerra Mundial, ali mesmo em Varsóvia. No Parque Lazienki, a vista do palácio sobre as águas é linda. Ali, fazendo fotos, fui novamente interrompida. Agora era a polonesa Alicja Mielnik que me abordava em inglês. Perguntei a ela qual era sua principal recordação dos tempos duros. “Lembro sempre de uma barra de chocolate que meu pai conseguiu trazer escondida em uma viagem. Cortei-a em sete pedacinhos para comer ao longo dos dias.”
Encontraria Alicja na noite seguinte em Praga, um antigo bairro operário. Lá, galerias de arte, restaurantes, boates e teatros se juntam num clima tão moderno e urbano que é difícil não pensar em Berlim. É difícil também não se alegrar com a prosperidade que pouco a pouco vai encobrindo as nódoas da guerra. Curti a noite ouvindo histórias dos locais e dançando Strokes. De vez em quando me lembrava de meu amigo desdenhoso e pensava que ele, na verdade, iria adorar a Polônia. É, dona Esther, a senhora é que sabia das coisas.
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