O que muda nas regras de cancelamento e remarcação de voos
Como as leis emergenciais expiraram em dezembro, voltam a valer as antigas regras da Anac
A pandemia do coronavírus desencadeou um número sem precedentes de cancelamentos de voos por parte das companhias aéreas, bem como desistências de viagem por parte dos passageiros. Até então, casos como esse estavam sob o guarda-chuva da resolução nº 400 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), de 2016. Desnecessário dizer que as regras deixaram de fazer sentido no contexto da pandemia e, por isso, houve a necessidade de criar uma lei emergencial (nº 14.174/2021) com novos direitos e deveres tanto para as aéreas quanto para os consumidores.
A tal lei emergencial diz respeito a voos nacionais marcados para acontecer entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2021 e voos internacionais entre 19 de março de 2020 e 31 de março de 2022. Apesar da pandemia continuar fazendo parte da nossa realidade, a lei não foi prorrogada por mais tempo. Desta forma, voltam a ser regulados pela resolução nº 400 da Anac todos os voos domésticos realizados a partir de 1º de janeiro e todos os voos internacionais a partir de 1º de abril. (Atenção: o que vale é a data do voo, e não a data em que a passagem foi comprada!)
Para esclarecer as diferenças entre as regras e como isso afeta a nós, os viajantes, conversamos com dois advogados especializados no assunto e um representante do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o diretor de relações institucionais Igor Britto. Segundo ele, a lei emergencial frequentemente favorecia a companhia em detrimento do consumidor. E não à toa: um dos objetivos do governo era evitar quebradeiras entre as aéreas, muito mais do que proteger os passageiros afetados.
O maior exemplo disso é que a lei emergencial dava às companhias aéreas um prazo de até 12 meses para reembolsar os passageiros que tiveram seus voos cancelados durante a pandemia. Na resolução da Anac, que voltou a vigorar em voos nacionais, agora são apenas 7 dias. Por outro lado, houve uma boa impressão em relação à lei emergencial porque ela trouxe a possibilidade de desistir de fazer uma viagem, pegar um crédito no mesmo valor pago pela passagem, sem incidência de multas contratuais, e usá-lo para comprar outro voo no futuro – o que a resolução da Anac, de fato, não prevê. Isso não significa, no entanto, que o consumidor estava isento de pagar eventuais diferenças tarifárias. “O valor do crédito nem sempre cobre o valor de um novo bilhete”, explica Britto.
Para esclarecer os direitos dos passageiros, preparamos um comparativo entre a lei emergencial e a resolução nº 400 da Anac. Lembrando que a lei emergencial diz respeito aos voos domésticos até 31 de dezembro de 2021 e internacionais até 31 de março de 2022, enquanto a resolução vale de 1º de janeiro de 2022 em diante para voos nacionais e a partir de 1º de abril para internacionais:
Situação 1 – A companhia aérea cancela o voo
Como era com a lei emergencial (que segue válida para voos internacionais até 1º de abril) – A companhia aérea deveria oferecer quatro opções para o passageiro: 1) reacomodação em outro voo no mesmo dia; 2) remarcação da passagem para outra data; 3) reembolso do dinheiro (em até 12 meses); 4) crédito no valor da passagem para ser usado em outra oportunidade. A primeira e a segunda opção, geralmente as preferidas por não implicarem em mudanças de planos para o viajante, nem sempre era possível devido à escassez de voos. A terceira opção é pouco vantajosa para o consumidor porque a companhia tem o direito de devolver a grana em até 12 meses – mas pelo menos o valor é corrigido de acordo com a inflação. A quarta opção, por fim, acaba sendo mesmo a melhor: em no máximo sete dias o passageiro já está com a carta de crédito na mão, de valor igual ou superior ao que foi pago, para utilizar na compra de outra passagem aérea nos próximos 18 meses. Porém, com os preços aumentando a cada dia, nem sempre o valor pago lá atrás corresponde ao de um novo bilhete, o que obriga o cliente a colocar mais dinheiro para cobrir a diferença.
Como voltou a ser com a resolução da Anac – Assim como acontece na lei emergencial, a resolução da Anac estipula que a companhia aérea deve oferecer quatro opções para o passageiro: 1) reacomodação em outro voo, 2) remarcação da passagem, 3) reembolso do dinheiro e 4) crédito no valor da passagem. A principal diferença é que, em caso de reembolso, a companhia aérea deve devolver o dinheiro em até 7 dias. Como o prazo é muito inferior, não há correção do valor de acordo com a inflação, mas ainda assim trata-se de um bom negócio para o consumidor, que deve ser ressarcido em no máximo uma semana. O crédito continua sendo uma possibilidade, mas os termos são mais flexíveis. A resolução nº 400 da Anac estabelece apenas que o valor deve ser igual ao da passagem. O restante fica à mercê do regulamento da companhia aérea e deve ser negociado entre empresa e consumidor.
O que dizem os advogados? O advogado Marco Antonio de Araújo Júnior explica que quando o cancelamento não acontece por culpa ou vontade do cliente, a companhia aérea tem sempre a obrigação de achar uma alternativa que seja favorável ao passageiro, que não deve arcar com qualquer custo adicional. Isso acontece tanto na lei emergencial quanto na resolução da Anac que voltou a vigorar.
A resolução nº 400 da Anac determina que quando a companhia aérea cancela um voo e o passageiro não é comunicado antes da sua chegada ao aeroporto, ele passa a ter direito também à uma “assistência material”, que vai aumentando conforme a quantidade de horas que passa aguardando até que a situação seja resolvida. Funciona assim: depois de uma hora de espera, o passageiro tem direito a acessar a internet ou fazer uma ligação telefônica gratuitamente. Passadas duas horas, ele deve receber também algum tipo de alimentação ou dinheiro para pagar por uma refeição. De quatro horas em diante, ele tem direito a hospedagem, em caso de necessidade de pernoite, e traslado de ida e volta até o local. A regra valia tanto para voos nacionais quanto internacionais e estava igualmente prevista na lei emergencial.
O problema é que, em 31 de outubro de 2021, a Anac decidiu flexibilizar os termos da “assistência material” no caso de voos internacionais através da resolução nº556/2020, que passou a valer também na lei emergencial. Na prática, isso significa que até 31 de março de 2022, a companhia não é obrigada a prestar assistência em situações que fogem ao seu controle, como fechamento de fronteiras ou de aeroportos por determinação das autoridades. O advogado Marco Antonio entende que essa prática é ilegal. “A nova resolução transfere ao consumidor a responsabilidade integral por eventuais dificuldades e prejuízos no momento mais crítico possível, que é quando ele está em um aeroporto estrangeiro e se vê impedido de embarcar por restrições impostas pela pandemia”, analisa. Em situações como essa, o especialista aconselha tirar fotos e fazer filmagens que comprovem que o passageiro compareceu ao aeroporto e teve o embarque negado, além de guardar os comprovantes de gastos com alimentação, transporte e hospedagem. Todo esse material poderá ser usado para tentar negociar diretamente com a aérea ou demandar judicialmente uma indenização por danos materiais e/ou morais.
Situação 2 – O passageiro desiste de embarcar no voo
Como era com a lei emergencial (que segue válida para voos internacionais até 1º de abril) – O passageiro que desistia de embarcar em um voo obviamente não tinha direito à reacomodação, mas poderia pedir reembolso do dinheiro ou crédito no valor da passagem. O reembolso dificilmente era vantajoso porque, ainda que o valor seja corrigido de acordo com a inflação, a companhia aérea tem o direito de cobrar multas e só devolver o valor que eventualmente restar depois de 12 meses. O crédito, por outro lado, é isento de multas, chega na mão do cliente em até 7 dias e pode ser usado dentro de 18 meses. O problema é que, com a alta dos preços, o crédito nem sempre cobre o valor de uma passagem nova. Mas, ainda assim, o crédito era um negócio melhor para o consumidor do que o reembolso. É claro que existem segundas intenções por trás disso: os passageiros são desestimulados a pedir o dinheiro de volta, o que poupa as companhias aéreas de colocarem a mão no bolso em meio à crise.
Como ficou com a resolução da Anac – Da mesma forma que a lei emergencial, a resolução da Anac não dá direito à reacomodação, mas permite que o passageiro que desistiu de embarcar peça reembolso do dinheiro, crédito no valor da passagem ou remarcação. O reembolso é sujeito a multas contratuais, mas o lado bom é que ele deve ser pago em até 7 dias, prazo bem menor que os 12 meses estipulados pela lei emergencial. Já o crédito depende muito das regras de cada companhia aérea, mas em geral a resolução da Anac permite que sejam cobradas multas contratuais e deixa em aberto em quanto tempo o passageiro deve receber e utilizar o voucher. A remarcação da passagem, por fim, só pode ser feita caso o voo seja para o mesmo destino do bilhete original e está sujeita a diferenças tarifárias/taxas que são definidas pela companhia aérea e devem ser pagas pelo consumidor.
O que dizem os advogados? Em uma situação de mundo normal, até faz sentido o consumidor ser menos favorecido caso queira cancelar um serviço contratado e, eventualmente, ter que arcar com multas e/ou diferenças tarifárias. “Essas penalidades que existem tanto na lei emergencial quanto na resolução nº 400 da Anac são resultado de um compromisso assumido e não cumprido pelo cliente”, explica o advogado Marco Antonio. Porém, no contexto atípico da pandemia, que ainda não acabou, entende-se que as pessoas devem ter o direito de cancelar seus planos. “Não podemos encarar as coisas como se estivéssemos em 2019. As pessoas que querem deixar de viajar estão fazendo isso por uma questão de saúde pública e por recomendação da própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”, acrescenta Igor Britto, do Idec. É em partes por isso que a lei emergencial estipula uma opção de crédito sem multas, já que não é justo que os passageiros saíam inteiramente prejudicados.
A advogada Viviane Costa, que atua na área de direito do consumidor, esclarece que tanto a lei emergencial quanto a resolução nº 400 da Anac não abordam especificamente a possibilidade de um passageiro testar positivo para a Covid-19 antes do embarque. Porém, a lei emergencial acaba sendo mais favorável ao consumidor em situações como essa porque dá direito ao crédito sem multas contratuais, o que não está previsto pela Anac. Igor Britto, do Idec, critica a possibilidade do passageiro ser penalizado nesse caso. “Uma companhia aérea não pode acabar obrigando uma pessoa que está contaminada ou com suspeita de contaminação a viajar. Mas é isso que ela faz quando aplica uma multa desse tipo”, afirma. A recomendação de Viviane Costa é, antes de tudo, tentar negociar diretamente com a aérea, enviando um laudo médico que comprove que está impossibilitado de viajar. “Por se tratar de um motivo de força maior, a empresa deveria remarcar ou alterar o voo sem custo”, explica. Tudo isso, segundo ela, deve ser feito o quanto antes. “Se o pedido for feito muito em cima da hora, corre-se o risco da companhia simplesmente aplicar a multa. Quanto antes contatar a empresa, melhor”, continua. Caso não haja acordo, o passageiro pode entrar com uma medida judicial.
Resumo:
- Os voos nacionais marcados para acontecer de 1º de janeiro de 2022 em diante são regulados pela resolução da Anac
- Os voos internacionais marcados para acontecer até 1º de abril de 2022 ainda são regulados pela lei emergencial
- Caso um voo seja cancelado pela companhia aérea ou o passageiro desista de embarcar, o prazo para reembolso é de 7 dias pela resolução da Anac e 12 meses pela lei emergencial
- A carta de crédito é isenta de multas pela lei emergencial, enquanto que na resolução da Anac os termos devem ser negociados entre companhia aérea e o passageiro
- Até 31 de março de 2022, a companhia aérea não é obrigada a prestar assistência material ao passageiro em caso de cancelamento de voos internacionais por fechamento de fronteiras