Eu tenho uma teoria (comprovada em campo a cada dia dos meus oito anos em Portugal) difícil de ser derrubada: é preciso se esforçar (muito!) para comer mal por aqui. Qualquer portinha, qualquer boteco, qualquer pé sujo tem potencial para refeições inesquecíveis. Pode não chegar a tanto – mas ruim dificilmente vai ser. Tudo isso para dizer: é sempre com a expectativa alta que eu parto rumo a novas descobertas pelo país. E a Ilha da Madeira foi uma bela surpresa. Eis as minhas melhores experiências por lá (continua no próximo post!):
Um jantar que é a maior viagem
O laboratório do suíço Selim Latrous esconde-se numa esquina errante de um shopping de ares decadentes em pleno centro do Funchal, a capital da Madeira. Depois de descer uma escadaria que nos dá a certeza de estar no lugar errado, afinal uma porta entreaberta se apresenta como o passaporte para um universo paralelo. O universo de um jovem ex-profissional de marketing que estudou na famosa escola de hotelaria de Lausanne e, depois de rodar o mundo, foi parar na Madeira após buscar no Google por plantação de banana na Europa – queria calor.
Sem qualquer experiência no fogão, Selim abriu o The Wanderer, o restaurante mais instigante da ilha, onde o menu degustação de cinco pratos custa € 125 por pessoa e é um festival de (belas) surpresas que mistura ao mesmo tempo técnica e excentricidade. “Sou muito curioso e tenho uma cabeça altamente científica”, diz ele, que se considera um artista, não come o que cozinha e sempre leva para o prato ingredientes selvagens que encontra nas suas incursões pela natureza da ilha.
A viagem começa com drinks num sofá de veludo azul e segue na única mesa da casa, onde aterrissam pratos como o peixe com chutney de banana, molho tom ka, pesto tailandês de castanha de caju, curry, abacaxi e… ice plant, o ingrediente selvagem da vez. Mas não se engane: aqui, nada é o que parece ser (ainda bem!).
Uma cozinha com quartos
O que acontece quando um grande chef decide realizar o sonho de abrir um hotel boutique? O óbvio: a cozinha vira protagonista e todo o resto, mero coadjuvante (embora, aqui, esta designação não faça jus às acomodações esculpidas nas pedras, ao jardim de lavandas, à piscina com vista do mar). Foi este o desfecho do novíssimo Socalco Nature Hotel, na Calheta, onde a grande estrela é uma cozinha com uma enorme parede de vidro, sempre aberta a quem quiser se aventurar. O playground do chef Octávio Freitas foi complementado ainda por hortas espalhadas pela propriedade e até vinhedos que vão dar os frutos para as futuras experiências enológicas do mestre, que já se aventura nesta seara há 10 anos.
É neste cenário que acontecem as experiências de “live cooking”, sempre com foco nos produtos regionais. Quem guia o workshop é o próprio chef ou seu braço direito, Silvio, e todo mundo coloca a mão na massa, prova e brinda antes de sentar para comer. Os pratos são decididos na hora (esta também é a filosofia do restaurante), de acordo com o que houver de mais fresco no mercado. No nosso caso, começamos com uma frigideira de lapas, o marisco que é a cara da ilha – elas foram aquecidas apenas para se soltarem das conchas, e depois temperadas com azeite e limão. E seguimos com atum com cebola caramelizada num vinagre artesanal preparado pelo senhor Cisaltino, o pai do chef (que é também quem cuida da horta); peixe-espada com cebolada de tomate; e cavala com papas de milho.
A experiência é combinada diretamente com o chef e está aberta também a não hóspedes, sem um preço fixo. “Os valores são sempre ajustados às possibilidades dos clientes”, diz Octávio. “As portas da minha cozinha estão sempre abertas!”
Um chá da tarde very british (mas com vista do mar!)
Os casarões e palacetes espalhados por toda a ilha e os sobrenomes in english perpetuados pelas famílias que há muito já se tornaram locais são resquícios que fazem jus aos ares aristocráticos que insistem em pairar sobre este território de ares tropicais distante cerca de mil quilômetros do continente europeu. No Reid’s Palace Hotel, ícone erguido sobre as falésias debruçadas sobre o mar do Funchal, onde as paredes cor de salmão já deram abrigo a ícones britânicos do século passado como Churchill e Bernard Shaw, há tradições que sobreviveram ao passar do tempo e são cultuadas ainda hoje.
É o caso do chá da tarde, ritual que se repete diariamente nos terraços que se abrem para o jardim botânico recheado de espécies exóticas e, lá embaixo, o mar.
No menu, 24 variedades de chás e infusões foram escolhidos a dedo para acompanhar os clássicos sanduíches de salmão, pepino e ovos, os scones macios e quentes escoltados por geleias e um sem fim de tortinhas, bolos e docinhos. O hotel tem, inclusive, o seu próprio blend de chá preto. A experiência custa € 36 por pessoa.
Moderninces em pleno porto
Portos, em qualquer lugar do mundo, tendem a ser ambientes inóspitos e de ares industriais. O do Funchal, famoso por receber navios de cruzeiros do mundo todo, não foge à regra. Mas é aí que está o grande charme da sacada da designer Nini Andrade Silva, que construiu ali – literalmente – o seu porto seguro. Chega-se ao Design Centre depois de passar por grossas correntes à beira-mar, portas de ferro, elevador que suscita dúvidas existenciais e de repente… pááá.
Lá no alto, o espaço que inclui sala de exposições, loja, café e restaurante é um sopro de modernices que descortina vistas incríveis da cidade. Cacife uma mesa junto aos janelões de vidro e deixe-se levar pelas criações do chef Eleutério Costa, que trabalha como poucos os vegetais (para mim, o melhor critério de avaliação de uma cozinha).
No menu, as entradas incluem vieiras com legumes e uma saborosa sopa de tomate com ovo a baixa temperatura. O atum selado com telha de tapioca é uma excelente escolha entre os pratos principais.
As experiências gastronômicas da Madeira continuam no próximo post! Leia também a primeira parte desta viagem, sobre modos de organizar uma viagem pela Ilha da Madeira.