Ao descer as escadas de madeira que dão acesso aos salões, no piso inferior, a sensação é a de estar a caminho de um mergulho. Do outro lado das janelas de vidro, como se fosse uma extensão da própria construção, um Atlântico indomável se joga contra as pedras e protagoniza um verdadeiro espetáculo que, mais do que cenário, é coadjuvante das experiências que se propõem ali. “Neste sítio só faz sentido comermos o que o mar nos dá”, diz o chef Rui Paula, grande protagonista do Guia Michelin 2020, único chef a conquistar a segunda estrela em Portugal na última edição. “Aqui temos o mar como ninguém!”
Estamos na Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, na região de Matosinhos, ao lado do Porto. Mais: estamos de camarote sobre as águas, estrategicamente posicionados em cima das rochas, em um dos primeiros projetos assinados pelo arquiteto Alvaro Siza Vieira (um dos dois portugueses a vencer o Pritzker Prize, o grande Oscar da arquitetura mundial), nos idos 1963. Só isso já valeria a visita, não fosse a obra também o laboratório de criação de um dos maiores cozinheiros que o país já produziu.
Esqueça a carne, o cabrito, o porco, estrelas da cozinha portuguesa. O que Rui Paula propõe em sua casa é uma releitura de receitas clássicas à base de peixes e frutos do mar, e também uma visita a cozinhas do além-mar – para isso, e por pura licença poética, as etapas do menu são chamadas de “cantos”, como na obra de Camões. “Somos um povo descobridor, andamos por todo lado”, diz o anfitrião, estrela também do Master Chef Portugal. “Isso me dá liberdade e me permite, com conceito e com história, ir mais além sem fugir do propósito.” O que ele quer dizer com isso? Que o menu tem até mesmo a sua versão do brasileiríssimo bobó. E que versão.
No mais novo duas estrelas português há exatos 21 cantos, ou pratos, que podem ser combinados em menus degustação de seis (€ 90), 12 (€ 120) ou 21 (€ 160) etapas, a escolha do cliente. A harmonização, sobretudo com vinhos, a cargo do sommelier Carlos Monteiro, sai por valores entre € 60 e € 110. E já que uma imagem vale mais que mil palavras… eis um resumo do que provamos por ali num aconchegante dia de inverno, com o mar quase a bater nos pés e um delicioso cheiro a maresia.
Para começar, um mergulho nas memórias. Reza a antiga tradição do norte português que o dia deve começar com pão e cevada. Aqui as torradas chegam sobre brasas e são acompanhadas por uma bela American Amber Ale:
A seguir, três “cantos” de uma só vez: tartar de atum, ostra e tapioca com tinta de lula (em primeiro plano); amêijoas a Bulhão Pato com croutons (na concha); e brûlée de ouriço com berbigão (um tipo de marisco) e queijo:
Éclair de couve-flor com mexilhão:
Robalo no seu habitat, com um surpreendente (e divino) molho de plâncton, escoltado por percebes e algas (o melhor prato, na minha opinião!):
Vieiras com pérolas de tapioca, finalizadas à mesa com vinagrete de limão e pó de chouriço:
Agora o homenagem à cozinha brasileira: uma bela interpretação do bobó, com salmonete, castanha de caju, mandioca e coco (concorre com o robalo ao título de melhor prato!):
Feijoada de bacalhau – purê de feijão branco, tripas e lascas de bacalhau, com coentro no topo (único que achei levemente enjoativo):
Agora as sobremesas. Para começar, colheita tardia, uma desconstrução aromática do vinho que acompanha o doce e um festival de texturas à base de uvas:
E o grand grand grand finale, Passeios de Outono, com os sabores da estação – castanhas, granizado de jurupiga (uma bebida à base de uva) e cogumelos:
Algumas notas: mesmo com tantas etapas, a refeição é leve; a carne não faz falta alguma; o mar faz mesmo parte da experiência; e a segunda estrela foi merecida. Se vem mais por ai? “Trabalhamos para a terceira estrela só para manter a segunda”, brinca o chef, antes de sair para a academia, que considera um “castigo” necessário para manter o foco no trabalho. Que assim seja.
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