“Filho, o papai morreu”. Te dar essa notícia foi a coisa mais triste que já fiz. Admito, ensaiei algumas horas para te dizer o indizível. Descartei de cara te contar histórias de estrelinhas no céu, fadas, unicórnios. Elas não combinam com teu jeito prático e forte de encarar os fatos. Peguei duas xícaras de café com leite e sentamos na mesa da cozinha ao lado da janela. Era 19 de outubro de 2022, você tinha seis anos. O céu estava azul, jamais vou esquecer.
Filho, este texto é longo, não poderia ser diferente, é pra te lembrar que a vida do teu pai continua em algum lugar, com certeza dentro de você – leia ouvindo Santa Flor, já explico o porquê.
Perder alguém é algo inexplicável, eu sei, mas eu prefiro pensar que teu pai está numa grande viagem! A definitiva, a mais bonita, a que a gente vai pra terra natal e não volta, aquela sem preocupação com excesso de bagagem, horários (a neura de viagem dele), sala de embarque e espera. Precisa só de nuvens fofas, exatamente como a gente vê na janela do avião.
Depois da passagem dele vivemos dois meses dolorosos, no limbo. Não dava mais, a gente precisava sair de casa pra respirar outros ares. Uma viagem a dois foi o que achei mais adequado para começar o processo de uma cascata de aceitações, uma delas era que dali pra frente eu seria mãe solo, coisa que nunca fui, mesmo a gente não sendo mais casados. Ele era um verdadeiro pai, como tem que ser.
Passado o Natal e com nossos corações em frangalhos, entramos no carro rumo à Serra Catarinense.
Na estrada pensei em tantas coisas! Uma delas foi que no fim do casamento lamentamos o prejuízo que seria nunca mais viajar a três interpretando os duetos mais bregas a plenos pulmões, nem capotar no avião ou dormir dentro de um motorhome como fizemos no Death Valley, na Califórnia, ouvindo o vento remexendo as dunas de Mesquite Flat. Deixaríamos de ver juntos você praticando idiomas, como fez quando era bem pequenininho pedindo a peach juice, please ou uma ensalada de tomate em Villa Traful, na Argentina.
Teu pai adorava viajar e era quando a gente melhor se entedia. Vivemos muito amor, muita dor e muitas viagens, sozinhos e depois com você, quando conhecemos nossa verdadeira vocação de casal: sermos teus pais. Nos bons tempos, teu pai e eu éramos o Pink e Cérebro das viagens, revezávamos os papéis, cada um com seus talentos. Era divertido, mas não vou romantizar. Nos tempos ruins a gente quebrou os pratos na Disney, espero que não tenha ficado gravado nas tuas lembranças infantis. Desculpa mesmo, eu não consigo pensar em nada mais fim de linha do que brigar na Disney!
Voltando à nossa viagem… tanta coisa aconteceu nestes mais de 2500 quilômetros sozinha com você entre São Paulo e Santa Catarina! Uns trechos poderiam estar em um filme cult francês, numa versão tupiniquim do monólogo de Hamlet ou num artigo de psicanálise. Entre descanso, vistas lindas e abraços que recebi das amigas que encontramos pelo caminho, passamos por construções e desconstruções. Às vezes virava uma novela mexicana, com choro e frases clichês.
Você andou um dia só de meias pelas ruas ruas de Curitiba e eu simplesmente não reparei que você não tinha calçado o tênis. No mesmo dia, no Parque Tanguá, você encharcou os pés rolando nas poças d’água chamando a atenção das pessoas pela sua alegria e liberdade, algo tão seu.
Andou enrolado num cobertor do Yoda no Parque das Águas, em Pinhais. Encaramos o trânsito de Bombinhas pra encontrar a Maria (espero que ainda sejam amigos aí no futuro) e vocês tiveram um dia gélido e chuvoso de praia, felizes da vida.
Também teve escapadas por estradas secundárias onde passei, cantando enquanto você dormia, por quilômetros ladeados de hortênsias. Ficamos parados em estradas de terra interrompidas por vacas dormindo, conhecemos o Piolho, o simpático jumento de uma estância que vou guardar a sete chaves, acampamos na beira de um cânion, o mesmo lugar onde, dias depois, fiz um ritual pra me despedir do teu pai. Foi assim: levei copinhos que trouxemos do Marrocos e bebi as duas últimas doses de um vinho do Porto (a única coisa que ele curtia) que estava empoeirado na casa dele, vencido desde 2013.
Subimos e descemos a Serra do Rio do Rastro várias vezes, só de farra, onde te contei sobre a viagem que tinha feito com teu pai há muitos anos. Foi ali que você disse com muita raiva: “Mãe, pra que falar do pai? Ele está morto!”. Neste dia nos abraçamos e choramos prometendo um ao outro que o papai sempre estará vivo no coração e nas nossas lembranças! Você mesmo me pediu pra manter a memória dele viva, não foi?
Eu tenho certeza que de alguma forma ele estava presente enquanto nosso carro “preto do Corinthians” – que você insiste que eu troque por um verde por causa do Palmeiras, o time de coração de vocês – deslizava pelas curvas sinistras da Serra do Rio do Rastro. Com certeza o teu pai estava também em Pomerode, que ele gostava demais, na Vila Encantada dos dinossauros que fomos de improviso. E também quando eu pedi a pior torta do mundo em Blumenau, onde ele teria feito uma melhor escolha e me criticado. Estava junto com a gente no manjadaço Madalosso, em Curitiba, se empanturrando de polenta frita, certeza. Mas ele jamais estaria na trilha onde o velho que mora dentro de você disse que achou legal, ainda que meio perigosa e eu questionei minha responsabilidade como mãe. Em vez disso, ele estaria na varanda da casa de madeira que ficamos, curtindo a rede e lendo um livro.
Ele estava quando você cantou, emocionado e de braços abertos pras montanhas, o coro da música do início deste texto:
O galo cantou, a ovelha baliu, o boi berrou, a cabra pulou, a pombinha voou, o burro rinchou…
Do nada, você começou um improviso cantando sobre tua adoção, sobre felicidade, sobre a morte do teu pai e sobre ele estar pra sempre em teu coração. Assisti perplexa e em êxtase aquela cena que você dizia, entre tantas coisas lindas: Que nasceu Fernando, que nasceu mamãe, que nasceu papai, nasceu família e nasceu Jesus.
Eu sou uma mãe semi-idosa, menino. Meu coração não aguenta tudo isso. Pega leve.
Ele sempre (sempre!) estará com você, até nas viagens que você já planeja. Só assim pra ele ir pra Índia, tua atual fixação, e pro Peru, pra onde ele jamais viajaria. Mas acho que iria com prazer pra Alemanha e Espanha, países que ele curte e você já colocou na sua lista. E, tenho certeza, ele estará de novo com você em San Francisco olhando a Golden Gate com o carro parado em Crissy Field, momento em que ele chorou grato pela oportunidade de te levar a um lugar sonhado por tanto tempo. Acho que o ápice será em Roma, a cidade preferida da vida, bem na Piazza Navona, onde ele quis te levar pra tomar o que considerava o melhor gelato do mundo: o de amarena da Tre Scalini.
Molequinho, eu te garanto que teu pai te amou mais que tudo na vida. Eu estava lá, eu vi. Que você guarde boas lembranças dele. Te amo, filhote. Tamu junto.
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