Vista do monte Urgull: o Rio de Janeiro do mar Cantábrico
Quando uma cidade celebra o dia de seu padroeiro com um desfile de centenas de homens vestidos de chef de cozinha batucando em barris de vinho, é sinal de que há algo muito especial em sua maneira de comer. A Tamborrada, a festa de San Sebastián – ou Donostia, em basco – que acontece a cada 20 de janeiro, é apenas um primeiro indício de que a vida deste balneário à beira do mar Cantábrico gira em torno dos prazeres da mesa.
A Tamborrada: desfile de centenas de homens fantasiados de mestre-cuca… será que a cidade é gourmet???
Uma curiosa estatística demográfico-gastronômica dá uma idéia mais exata das proporções deste fenômeno: é a cidade com mais estrelas do Guia Michelin por habitantes no mundo, 18 para 180 mil.
Donostia e seus arredores empatam com toda a Catalunha de Ferran Adrià no número de restaurantes com a cotação máxima de três estrelas da bíblia gastronômica Michelin, com três representantes: Juan Mari Arzak, Martín Berasategui (cujos restaurantes levam os seus próprios nomes) e Pedro Subijana, que comanda o Akelarre com o mesmo empenho com que deixa crescer os seus opulentos bigodes.
Andoni, do Mugaritz: garoto prodígio da cozinha basca (fotos dedivulgação)
Além dos chefs triestrelados, o Mugaritz, do garoto prodígio Andoni Aduriz (clique aqui para ver o meu post sobre o restaurante, com comentário do braço direito do Andoni sobre opost e tudo!), ostenta duas estrelas (muitos acham que elas ganharão mais uma amiguinha logo, logo) e ocupa o quarto lugar na lista dos melhores restaurantes do mundo da revista Restaurant (clique aqui para ver o post da Alê Forbes sobre a lista). O restaurante fica a vinte minutos do centro, em Errenteria.
O Kokotxa: umdos novos estrelados do pedaço
Em 2008, dois outros representantes donostiarras ganharam sua primeira estrela no guia vermelho: o Kokotxa, sob o comando do jovem chef Dani López, e o Kursaal, outra investida do mestre Berasategui.
Um pratinho básico de pintxos
A cidade produz tantos gênios dos fogões porque, historicamente, sempre teve a arte de comer bem como prioridade. Exercitar o prazer da gula é o programa número um. Não se sabe ao certo quando nasceu o hábito de “irse de pintxos“, ou seja, reunir-se com os amigos para beliscar tapas caprichadíssimas espetadas em palitinhos. Mas o certo é que a prática tem como origem os encontros (txikiteos) das muitas confrarias, exclusivamente masculinas, que rondavam o casco antigo da cidade para degustar os vinhos da região.
Um típico bar de pintxos
Os pintxos, nesta época, serviam para que os bravos gourmets chegassem em pé até o último brinde. E viraram algo tão comum e necessário quanto ir à praia é para o Rio de Janeiro. Os bares são o coração da cidade, o ponto máximo de encontro. E são também um terreno extremamente competitivo, onde cada um se esforça para criar o petisco mais apetitoso e criativo. Vários concursos são organizados e até mesmo um Congreso de Pintxos y Tapas acontece anualmente. Tudo isso faz com que a chamada “cozinha em miniatura” tenha tanta importância quanto os menus degustação dos chefs peso pesado.
Apressado come cru!
Trata-se de um ritual. Locais e turistas salivantes acotovelam-se no balcão munidos de pratinhos e servem-se das iguarias que ficam expostas. Tudo é fresquinho e recém-feito. Alguns pintxos quentes são apresentados crus e devem ir ao fogo quando solicitado pelo cliente (a plaquinha acima deixa a entender que alguns turistas mais afoitos acabam comendo sushi de lula de vez em quando).
O jeitão dos lugares é invariavelmente rústico e o clima é de botequim. Por motivos insondáveis, a tradição é jogar palitinhos e papéis no chão mesmo. Os que acham que comer em pé e ligeiramente espremido pode ser sinônimo de tortura se esquecerão de qualquer desconforto ao provarem, por exemplo, o foie gras fresco com purê de maça e geléia do La Cuchara de San Telmo, a brocheta de camarão do discreto Goiz-Argi (Calle Fermin Calbeton, 4), a tortilha de anchovas do premiadíssimo Bergara ou o canudinho de creme de queijo e anchova do La Vinya (Calle 31 de agosto, 3).
Vista do palácio de Miramar, chiquérrimo
Coerente com sua sofisticação gastronômica, a cidade é a capital espanhola da elegância. Esqueça as mecas eletrônicas de Ibiza ou o frenesi nouveau riche de Marbella. A cidade tem praias lindas, mas quem vem a San Sebastián muitas vezes está mais interessado em seu festival internacional de cinema ou de jazz, que a tornam ainda mais especial, ou nas primorosas esculturas de Eduardo Chillida, cujo museu a céu aberto vale o investimento de pelo menos uma tarde.
O “Pente de Vento”, de Eduardo Chillida, símbolo da cidade
A proximidade com a fronteira faz com que seja notavelmente afrancesada, tanto em sua arquitetura como em sua vocação intelectual. Ao mesmo tempo, é o coração do País Basco e seu maior orgulho nacional, assim como sua misteriosa língua (o euskera) e cultura milenar. Junte-se a isso o fato de que San Sebastián foi, a partir de 1845, o refúgio praiano da família real.
O museu ao ar livre Chillida, imperdível
Por problemas dermatológicos, Isabel II foi aconselhada a iniciar um tratamento baseado em banhos de mar. Para
literalmente salvar a pele da rainha, a corte decidiu rumar ao norte durante o verão. Em pouco tempo, foi seguida pro toda a aristocracia do país. No final do século XIX a cidade já era sinônimo de glamour.
Após a morte do rei Alfonso XII, em 1885, a rainha Maria Cristina manteve a tradição. A partir de então, San Sebastián viveu seus maiores anos de esplendor, a sua própria belle époque. O cassino, que funcionava no belíssimo prédio onde hoje é a prefeitura, chegou a ser um dos mais famosos da Europa. O hotel Maria Cristina – que se mantém entre os mais luxuosos do país e recebe as estrelas do festival de cinema – foi construído em 1912 pelo arquiteto francês Charles Mewes, o mesmo dos Ritz de Paris e Londres. E tornou-se ponto de encontro de políticos, artistas e personalidades da moda como Coco Chanel e Jean Patou.
Hoje em dia, o rei Juan Carlos e sua família preferem passar julho e agosto em Maiorca (clique aqui para ver o meu post sobre Maiorca). Mas Donostia jamais perdeu seu ar de nobreza. Os palácios e mansões à beira-mar seguem impecáveis.
Playa de la Concha, descoberta pela realeza
Uma das construções mais chamativas é o palácio Miramar. Além de dividir as praias de Ondarreta e La Concha, as mais bonitas, foi a antiga residência real. Os banquinhos de seus jardins e seu gramado irreprochável são camarotes perfeitos para observar o cair da tarde. Contemplar, diga-se, é o melhor a fazer entre uma refeição e outra.
As vistas desde os montes Igueldo e Urgull, estrategicamente localizados nas extremidades da baía de La Concha, sobre a qual a cidade se debruça, são um festival de ângulos espetaculares para observar Donostia desde as alturas e até mesmo seus arredores. Além de serem um ótimo pretexto para uma necessária caminhada digestiva.