Achados

Adriana Setti escolheu uma ilha no Mediterrâneo como porto seguro, simplificou sua vida para ficar mais “portátil” e está sempre pronta para passar vários meses viajando. Aqui, ela relata suas descobertas e roubadas
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Lições que tive com o pior parceiro de viagem da minha história

Veja que aprendizados devemos levar para a vida quando pensamos em viajar com quem não temos afinidade

Por Adriana Setti
Atualizado em 28 mar 2023, 00h32 - Publicado em 2 set 2016, 13h35

Martin: E se a gente tomasse um café?

Eu: Hahahaha.

Martin: Estou falando sério.

Cássio: E eu estou morrendo de vontade de comer uma lagosta ao thermidor, mas infelizmente acho que nessa praia deserta isso vai ser tão impossível quanto o seu café.

Martin: Mas a gente podia ir até o vilarejo [a uns 30 quilômetros dali] tomar um café.

Eu: Mas, Martin, nós acabamos de chegar nessa praia maravilhosa, perfeita e vazia… Não é todo dia que se está em um lugar assim. Já o café…

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Martin: Qual o sentido de ficar na praia perdendo tempo?

Silêncio.

Conhecemos o Martin em um pico de mergulho na Indonésia. Saímos de lá juntos meio por acaso, em direção a uma outra ilha remota na região do Sulawesi – e vivemos uma odisseia inenarrável para chegar até lá. Três barcos, um ferry errado, outro caindo aos pedaços, motoristas insanos e muita risada depois, éramos melhores amigos. Dessa ilha no fim do mundo, ainda emendamos uma temporada nas Filipinas na maior sintonia. Por que, então, não combinar outra empreitada juntos? Um ano depois, lá estávamos novamente, meu marido, Martin e eu, tendo essa conversa insólita e pouco amigável à beira do Caribe, no sul do México.

Foi a primeira vez que tretei forte com alguém durante uma viagem. Depois de mais de um mês juntos, e uma despedida seca (ainda que civilizada), nunca mais ouvimos falar da criatura. Passado o alívio de ter me livrado da companhia dele – e de seus desejos enigmáticos –, pensei muito sobre o motivo que nos teria levado àquele fundo de poço, me remordi pela minha parcela de culpa (quando um não quer, dois não brigam) e aprendi várias lições sobre viajar em grupo. A quem possa interessar:

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1. Lobos solitários podem ter dificuldade de conviver com a alcatéia

Martin é um lobo solitário por excelência. Há trocentos anos, escapa do inverno na Alemanha e viaja sozinho pelo mundo. No Sudeste Asiático, nós seguimos em paralelo: estávamos nos mesmos lugares, mas cada um na sua. Nada tinha sido arquitetado com antecedência. No México, dividimos planos e orçamento (entre os três, alugamos um carro, por exemplo). Para ele, era uma situação novíssima (do alto de seus quarenta e poucos anos). Moral da história? As pessoas que estão muito acostumadas a viajar sozinhas podem não ser as melhores companhias. Isso não quer dizer que elas sejam inviáveis, óbvio. Mas, da próxima vez que estiver prestes a embarcar com um lobo solitário tão radical, terei uma bela conversa prévia (o que faltou naquele caso) e tratarei de propor um esquema mais aberto.

2. 2 + 1 3

Nem todo mundo gosta de rodar o mundo com um casal – e a recíproca também pode ser verdadeira. Mas eu asseguro que podemos ser boas companhias para um viajante solo, desde que domemos nossas manias e, principalmente, não joguemos sempre em equipe. Depois do “caso Martin”, tive acessos de culpa e pensei bastante sobre o “fator casal” numa empreitada a três. Cheguei à conclusão que pode rolar numa boa se nos comportamos como um grupo de amigos: cada um opina individualmente, sem fazer panelinha-casal, evitando assim o eterno 2 X 1. Só dessa forma o terceiro elemento se sente parte do grupo, e não um apêndice. Menos mal que nosso amigo Bolacha, com quem viajamos um ano depois, está aí para provar que yes we can.

Mulher empurrando homem de uma plataforma no porto
(StudioThreeDots/iStock)

3. A incompatibilidade é mais incompatível na estrada

Se eu fosse vizinha do Martin lá na Alemanha, e nunca tivéssemos viajado juntos, é provável que nossa amizade durasse para sempre, de café em café. Mas, uma vez que ele acha que ficar na praia não faz o menor sentido – enquanto é o que mais gosto de fazer quando estou de férias – isso nos torna pessoas incompatíveis na estrada (ou pelo menos no Caribe). Para que vocês tenham uma ideia da gravidade da coisa, quando estávamos em Tulum (provavelmente uma das praias mais bonitas do mundo), ele passava longe da areia e preferia ficar no vilarejo, à beira da estrada, tomando seu maldito café e fazendo sei lá mais o que. Ou seja, amizade, amor e respeito não bastam para que um companheiro de viagem seja ideal. A coisa certamente fluirá melhor se os seus gostos e expectativas estiverem apontando para o mesmo lado. Para isso, é preciso conversar abertamente antes de embarcar. E, quem sabe, deixar aquela sua amiga gótica fora do próximo carnaval de Salvador.

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4. É falar agora ou calar-se para sempre

No começo, ele achou legal deixar-se levar — e até manifestou isso verbalmente. Depois, começou a sentir que estava “sendo arrastado” por nós – o que, de fato, era verdade. Mas, ao invés de expor as suas vontades misteriosas e, eventualmente, propor uma alternativa com nexo (tomar café numa praia deserta não é o caso), ele seguia os nossos passos e ia ficando cada vez mais emburrado – e isso valia tanto para a escolha do hotel e do restaurante, como para o roteiro. Você está feliz, Martin? Gostou daqui? Tá bacana? “It’s all right”, respondia ele num tom apático que me tirava do sério (e que virou meme aqui em casa). Com base nisso, concluí que é importantíssimo que todos os envolvidos discutam os planos em pé de igualdade. Caso contrário, quem se omite deve permanecer calado (e de preferência com um sorriso no rosto). E mais: não vale jogar nada na cara depois do terceiro rum com coca-cola da noite, hábito que “Martin – O Estranho” começou a adquirir em certo ponto da viagem.

 

5. Viajar com quem você não conhece pode ser melhor do que com um amigo difícil

Olha que coisa: tudo foi lindo com o Martin quando a gente tinha grau de intimidade zero. Na medida em que ficamos mais próximos, as coisas foram degringolando. Tem explicação. Quando viajamos na companhia de pessoas com quem não temos muita liberdade (a trabalho, por exemplo), é indispensável rolar um esforço de todas as partes para que a coisa funcione: pontualidade, flexibilidade, cordialidade. Já entre amigos, às vezes essas máximas da convivência se perdem em nome do “estamos em casa” – e isso nem sempre é bom. Veja bem: óóóóbviamente, viajar com seres queridos é a melhor coisa do mundo. O que eu quero dizer é que aquele seu amigo folgado, ou difícil (ainda que amado incondicionalmente), pode não ser a melhor pedida.

6. Mais vale um minuto de vergonha do que muitos dias de raiva

Essa é uma das máximas da minha mãe, que eu aplico em várias situações. No “caso Martin”, não tivemos coragem de dizer, a partir de tal ponto, que era melhor ele seguir o seu caminho. Hoje vejo que teria sido mil vezes melhor ter passado o tal minuto de vergonha antes que a relação degringolasse para muitos dias de raiva (mútua).

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