Dançando no escuro – duplamente literalmente
O show da dupla britânica Autechre era um dos mais esperados do primeiro dia do Sónar, um dos mais importantes festivais de música eletrônica de vanguarda do mundo, que inaugurou a sua edição 2015 ontem em Barcelona. Depois da apresentação do sueco Kasper Bjorke no Sónar Village, que botou o público pra dançar ao ar livre com batidas fáceis de assimilar, uma multidão começou a fluir em direção o Sónar Hall, tradicionalmente o palco mais experimental do festival. Espanto: atrás de uma cortina negra, a sala se encontrava num breu total. Com a ajuda de lanterninhas de celular, o público foi se acomodando. Então veio o primeiro acorde, pancadão distorcido, junto com um flash de luz branca que invadiu as pupilas dilatadas da multidão e terminou de cegar o público. Em seguida, escuro total até o final do show. Estranho, muito estranho.
Calculo que havia mais de três mil pessoas no espaço, totalmente lotado. Mas ninguém passou a mão na bunda de ninguém. Ninguém berrou piadinhas infames. Não houve empurra-empurra. O público calou, ouviu, dançou na medida do dançável (ritmo não é a palavra pra definir a coisa). O som era tão potente que nossas peles vibravam. Passado certo choque inicial, a grande maioria se tocou de que estragar o momento com a luz da tela do celular estava fora de contexto. Tudo escuro. Foi muito bonito ver o nível de educação e de respeito. E também foi inevitável pensar: imagina no Brasil?
Avessos a tocar ao vivo, os esquisitões do Autechre são considerados os magos da música eletrônica abstrata e da IDM (intelligent dance music). Recentemente, a FACT Magazine elegeu a faixa “Flutter” como o número 1 da lista das 100 melhores músicas de IDM da história. Não foi fácil resistir bravamente lá dentro a acordes tão distorcidos e imprevisíveis – confesso que fugi antes do final. Mas foi uma experiência e tanto.
Depois do “sacrifício”, a recompensa: um showzaço do Hot Chip no palco aberto, Village, que fez bombar o primeiro dia do Sónar como nunca vi, em 14 anos frequentando o festival (a quinta feira é tradicionalmente um dia meio “esquenta”). Foi pra mim, tenho certeza: mandando uma banana para a modernidade, o grupo encerrou o show inacreditavelmente com a minha música favorita do amado e idolatrado Bruce Springsteen, Dancing in the Dark (podia vir mais a calhar depois do show “dançando no escuro” do Autechre?).
Coisas do Sónar
A novidade deste ano é o “Sónar cashless”. Praticamente não circula dinheiro dentro do festival. Você ganha uma pulseirinha, carrega com ela com crédito e vai sendo escaneado a cada bebida ou comida que consome. Também é notória a volta dos catalães ao festival. No auge da crise econômica, o preço da entrada tinha ficado muito caro para quem mora aqui e os estrangeiros (principalmente britânicos) dominaram o Sónar. Ontem havia mais da metade do público local, o que dá uma outra atmosfera ao festival.
O Sónar +D – um congresso internacional sobre criatividade e tecnologia que acontece paralelamente ao festival — também engrenou com força total. A programação de conferências é matadora, com nomes como Google, Vimeo, Pinterest e Wired no cardápio. É uma pena que o alugar onde acontecem os encontros seja tão barulhento.
O que vem aí
Ontem à noite o festival teve um show especial do Chemical Brothers, a grande atração desta edição, que volta a tocar no sábado à noite. Se eu sobreviver até lá, prometo voltar aqui para contar como foi. E hoje ainda tem os sul-africanos do Die Antwoord, mais Hot Chip, Tiga fazendo ao vivo (o que não é muito comum) e mais um moooooonte de nomes super vanguardistas e pouco conhecidos do grande público, o que é praxe no Sónar.
* Fotos de Cássio Leitão
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