Achados

Adriana Setti escolheu uma ilha no Mediterrâneo como porto seguro, simplificou sua vida para ficar mais “portátil” e está sempre pronta para passar vários meses viajando. Aqui, ela relata suas descobertas e roubadas
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Barcelona, a cidade-fantasma do turismo

Enquanto a vida segue com relativa normalidade nos bairros menos centrais, as zonas turísticas se transformaram em cenário de filme pós-apocalíptico

Por Adriana Setti
Atualizado em 31 ago 2020, 13h43 - Publicado em 31 ago 2020, 10h33

Caminhar pelas ruas do centro de Barcelona neste mês de agosto tem um quê de ficção pós-apocalíptica. Praticamente todos os hotéis do Bairro Gótico, do Raval e do Born estão fechados. Alguns deles, como o clássico Peninsular, vedaram suas entradas com paredes de tijolos para evitar saques e invasões. As Ramblas estão às moscas, sem mesas no calçadão. A maioria das lojas está fechada. Não à toa, até o escritório de turismo está com e persiana baixada, algo extremamente simbólico.

O verão  em Barcelona tinha começado em clima de otimismo contido. Coincidindo com o início da época mais quente do ano, o fim do processo de “desconfinamento” reabriu a cidade para os turistas espanhóis e europeus. Eles vieram, de mansinho, ocupando timidamente os poucos hotéis abertos. Odiados por parte da população em outros tempos, esses valentes foram recebidos com sorrisos, ocultados pelas máscaras. Porém, com a piora da situação epidemiológica em meados de julho e novas medidas de restrição, o turismo voltou a zerar, justo em agosto, que seria o auge da alta temporada em condições normais.

Sem os viajantes, a vida vai acontecendo com relativa normalidade nos bairros menos centrais. Ainda que haja restrições quanto ao número de pessoas, restaurantes, lojas, cabeleireiros, academias e outros estabelecimentos estão funcionando. Já no centro histórico, é como se o tempo tivesse parado nos momentos mais drásticos do confinamento. A vida desapareceu das ruas.

Esse estranho fenômeno é reflexo de décadas de overtourism, que acabaram convertendo algumas zonas de Barcelona em parques temáticos. Em bairros como a Barceloneta e o Gótico, por exemplo, quase não há moradores, uma vez que imensa parte dos edifícios são totalmente ocupados por apartamentos alugados no Airbnb, hotéis e outras modalidades de alojamentos para turistas.

A gentrificação provocada pelo turismo está longe de ser exclusividade em Barcelona, claro. Mas não há dúvidas de que, na capital catalã, temos um case famoso internacionalmente. Expulsos pelos aluguéis abusivos, os moradores foram deslocados para fora do centro. Pouco a pouco, o comércio também passou a ser direcionado aos turistas. Saem as quitandas, chegam as lojas de aluguel de bike elétrica. Fecham as padarias de toda la vida, aparecem os brunchs com avocado toast. Morre a mercearia do Manolo, aparece a loja de imã de geladeira do Barça. O resultado, em tempos de pandemia, se nota claramente: uma região esquecida pelos moradores já não se sustenta pela “vida real” de Barcelona. É assustador.

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Bairro Gótico: um parque temático fechado pela pandemia (Pixabay/Reprodução)

Uma crônica do jornal elPeriódico fala de Barcelona como uma “cidade Donut”, conceito que surgiu nos Estados Unidos para definir urbes nas quais o centro (o furo da rosquinha) ficou esvaziado por algum fenômeno econômico. O exemplo mais dramático é Detroit, que se transformou em terra de ninguém com o desaparecimento de sua indústria automobilística, a partir dos anos 1950. Soa exagero comparar a capital catalã com a metrópole de Michigan, até porque sabemos que a situação criada pela pandemia é temporária. Mas, quando tudo isso passar, as imagens da “Detroit do turismo” (como diz o autor da crônica) servirão de argumento para qualquer um que defenda que as cidades precisam gestionar o turismo de forma racional para continuar existindo como tal.

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