Era como se o cavalo negro e brilhante flutuasse sobre a multidão. Em um filme, teria sido uma passagem em câmera lenta: aquela crina esvoaçante, as milhares de pessoas com as mãos para o alto. A cada passo do animal a massa humana se abria com exatidão para deixá-lo passar – verdadeiro milagre em uma estreitíssima rua medieval. Então o bicho empina. “Ôeeee”. E outra vez. “Ôeeeeeeee”. Mais uma. “Ôeeeeeeeeeeeeee”.
Os espanhóis têm algo fundamental em comum com os brasileiros: sabem fazer uma festa de rua como ninguém. Seriam necessárias três vidas para percorrer todas as celebrações ibéricas. Ainda assim, arrisco dizer que o Sant Joan de Ciutadella, na ilha de Menorca (arquipélago das Baleares), é a sua obra-prima.
Ninguém sabe ao certo explicar a origem da festa. Mas indícios apontam para o século 14. Em mais de 7 séculos, os menorquinos tiveram tempo suficiente para criar uma ritualística complexa que rende assunto para uma vasta bibliografia. Como decifrá-la está bastante além da minha capacidade neste momento, me limito a contar um pouco do que vivi.
A intensa programação começa uma semana antes do dia 24 de junho (dia de São João) e envolve uma série de atos. Tudo faz sentido dentro do balaio histórico, social e hedonista menorquino, mas o conjunto da obra acaba tecendo um enredo altamente exótico aos olhos de um forasteiro. O homem que desfila pelas ruas carregando um cordeiro enfeitado como um poodle de madame; famílias inteiras sendo bombardeadas com avelãs; o nobre que autoriza o início da festa… Essas e outras passagens esquentam os ânimos para o que realmente interessa: o momento em que dezenas de cavaleiros desfilam pela cidade (em diversos lugares e contextos diferentes), levando a multidão ao delírio, o que acontece das 18h do dia 23 até a noite do dia 24h, com um breve intervalo ao longo da madrugada. Os principais extratos da sociedade de Ciutadella (a maior cidade da ilha) estão representados por seus respectivos cavaleiros, da nobreza (sim, senhor) aos camponeses, passando por diversos ofícios.
O vídeo abaixo faz um resuminho de todos esses rituais em imagens picadas:
E esse outro mostra um pouco do astral diurino da festa:
Não há rojões (ao contrário do que acontece no resto da Espanha na noite de San Juan). Praticamente não há música. Todas as atenções estão voltadas para os magníficos cavalos e, na ausência temporária deles, a multidão embala a festa no gogó, entoando músicas típicas, gritos que parecem de torcidas organizadas e batendo palmas. É a alegria bruta, sem aditivos, sem muleta. Poucas vezes vi tanta gente sorrir ao mesmo tempo.
Qualquer pessoa que viva em Menorca dirá que se trata de uma loucura coletiva, uma festa selvagem e não recomendada aos muito sensatos. Mas tudo é uma questão de parâmetros. Com muitos carnavais nas costas, caí de amores pelo Sant Joan justamente pelo seu lado pacífico e civilizado. Sendo um pouco safo, dá pra passar por tudo isso sem perrengue.
Colocando uma lupa sobre a multidão que estampa as fotos da festa (assustadora), você verá famílias, crianças e até (muitos) idosos. Ninguém encoxa ninguém. Celulares não saem voando. Mão na bunda, só na do cavalo. Dê um desconto para um empurra-empurra aqui e outro acolá – afinal de contas os animais circulam pelo meio do povão. Mas você pode perfeitamente evitá-los e, ainda assim, ficar muito perto da ação. Querendo, o ser humano funciona bem. Acredite.
Chaveco? Rola, claro. Mas de leve. Bebedeira? Também: de gim com refrigerante de limão (gin amb llimonada em Ciutadella ou pomada para o povo de Mahón, a cidade “rival”), o goró típico da ilha. Mas o foco da festa é outro. E você terá certeza disso quando, lá pelas tantas, tocar na barriga quente de um cavalo menorquino em pleno voo e gritar o primeiro ôôôôôôeeeeeeee.
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