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Turquia: dois continentes a sua escolha

Com um pé na Europa e o outro na Ásia, a Turquia tem o melhor de dois mundos: a vibe, a noite, o misticismo, as mesquitas e os doces dignos das Arábias

Por Rachel Verano
Atualizado em 16 dez 2016, 09h16 - Publicado em 12 set 2011, 11h47

Se um dia você resolver procurar pela Turquia no clássico jogo de estratégia War, irá se decepcionar. O país não está lá. Omiti-la deve ter sido a melhor solução para um dilema que certamente surgiu na hora de desenhar o tabuleiro – escolher o continente onde colocar a Turquia. Havia duas opções: na Europa, que no War é toda pintada de azul, ou na Ásia, de amarelo. Azar no jogo, sorte na vida real. Ter um pé na Europa e o outro na Ásia é o grande barato da Turquia.

Com fronteiras com a Grécia e a Bulgária, em seu lado oeste, e com a Síria, o Iraque, o Irã, a Armênia e a Geórgia nas bandas do Oriente, o país é, para dizer pouco, único. Istambul, a antiga Bizâncio ou, mais atrás ainda, a antiga Constantinopla, capital do Império Romano no Oriente, sintetiza essa inusitada geografia fusion, com hotéis-butique, como o W, ao lado de mesquitas milenares; casas noturnas frequentadas por celebridades ocidentais que ao sair, ao amanhecer, ouvem o primeiro dos cinco chamados dos muezins para as preces do dia. E o bom é que o brasileiro já não pode usar a velha desculpa por adiar sua visita ao país, a de que a Turquia está a muitos aeroportos e a muitas conexões de distância. A Turkish Airlines voa direto de São Paulo a Istambul – desde março, sem nem mesmo a escala “técnica” em Dacar, no Senegal. E não é necessário visto.

Há uma boa razão para ir a Istambul – e de lá “conquistar” a Turquia – em 2010. Neste ano, a cidade, junto com Pecs, na Hungria, e Essen, na Alemanha, foi escolhida uma das capitais culturais da Europa. Por isso, monumentos históricos estão sendo revelados após longas restaurações e novos museus abrem suas portas. Durante o ano, diversos eventos irão reforçar o status de Istambul como hotspot mundial. Principal cidade de um país muçulmano extremamente tolerante, em Istambul bebe-se sem constrangimento – exceto talvez o café, que, à moda turca, não é nunca coado. Istambul e toda a Turquia têm um passado tão rico e intrincado que é melhor fazer uma pausa para um parêntese histórico, já que por lá passaram muitos povos e conquistadores, sem contar batalhas, estilos arquitetônicos, revoluções.

Do começo, então: a primeira cidade do mundo pode ter surgido ali, em 7000 a.C., em Çatalhöyük, sudoeste do país. Ao longo dos séculos ocuparam a região, entre outros, assírios, hititas, gálatas – povo a quem o apóstolo Paulo destinou uma de suas epístolas –, frígios, persas. Os romanos viveram lá séculos de esplendor, ao fundar Constantinopla – homenagem ao imperador Constantino –, em 324, e, assim, acabaram por criar um braço no Oriente. Dos romanos aos bizantinos e depois aos otomanos, a transformação de Constantinopla em Istambul marcou o fim de uma era, a Idade Média, em 1453.

Muçulmanas nos jardins do Palácio Topkapi, em Istambul

Turkish Delight: muçulmanas nos jardins do Palácio Topkapi, em Istambul – Foto: Marco Pomárico

Não seria exatamente verdadeiro afirmar que essas coisas passavam pela minha cabeça numa tarde preguiçosa, em que eu contemplava a paisagem de um café instalado no tabuleiro inferior da Ponte Gálata, que liga as partes norte e sul de Istambul ocidental. As mesas estavam repletas de chás açucarados e narguilés, e o que eu tinha à minha frente, a perder-se bastante de vista, era o célebre Mar de Mármara, braço do Mediterrâneo que mais se aproxima de outro mar que banha a Turquia, o Negro. No tabuleiro alto da ponte estavam dezenas, talvez centenas de pescadores, debruçados no parapeito, lançando a sorte ao mar. Aquele parecia ser um dia bom para a pesca – e também para a simples contemplação dessa atividade. Se eu olhasse à esquerda, via a Torre Gálata num momento “dourado”, banhada pela luz do fim do dia. E, se olhasse à frente, bem à frente, admirava a chegada da noite em outro continente, a Ásia. À direita, do outro lado da ponte, já eram as luzes da Yeni Camii que se acendiam, e assim deixavam a mesquita ainda mais imponente. Yeni Camii é uma mesquita “caçula”, com apenas 500 anos de idade. Logo atrás de seus minaretes se encontram outros muitos minaretes, estes últimos de mesquitas mais antigas, de dez séculos, pelo menos. Elas ficam no bairro de Sultanahmet, o coração da Istambul histórica.

Sultanahmet guarda também um dos mais fabulosos edifícios já erguidos pelo homem, a Basílica de Santa Sofia, e que é um marco da passagem de dois impérios: o Bizantino e o Otomano. Ela é, há quase 1 500 anos, um ícone da arquitetura mundial. Sua cúpula, um colosso com 32 metros de diâmetro a quase 60 metros de altura, mais parece flutuar. Erguida em 537, reinou absoluta como a mais bela igreja do planeta, até ser transformada em mesquita pelos conquistadores otomanos, no século 15, quando os impressionantes mosaicos cristãos ganharam a companhia de elementos tradicionais do islamismo. Agora, pela primeira vez em 17 anos, quem entrar na maior atração de Istambul vai poder prestar bem mais atenção a todos esses detalhes. Os enormes andaimes de 18 toneladas que enfeavam e se espalhavam por todo o interior da basílica, desde que começaram os trabalhos de restauração, há 17 anos, acabaram de ser retirados. Mais: o rosto original do anjo Serafim, trabalho do século 19 feito pelos irmãos ítalo-suíços Fossatti, e que até então permanecia encoberto, agora está exposto, pela primeira vez, no canto nordeste do edifício.

Além da basílica, os 10 milhões de turistas esperados para os próximos meses em Istambul poderão também ver a nova ala das cozinhas do Palácio Topkapi, às margens do Mar de Mármara, construído a mando do sultão Mehmet II. O lugar foi completamente restaurado depois do grande terremoto de 1999. E, entre as centenas de exposições, workshops, grandes shows e apresentações programadas para este ano, mais uma aquisição de peso para a cidade: no segundo semestre, será inaugurado o Museu da Inocência, na região de Çukurcuma, uma homenagem ao livro homônimo do escritor Orhan Pamuk, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2006. A obra de Pamuk gira em torno de Kemal e sua obsessão amorosa por Fusun, uma prima distante que lhe deu um fora. Na impossibilidade de reconquistá-la, Kemal começa a colecionar todo o tipo de quinquilharia que sua amada toca ou que o faça lembrar dela e, ao fim, acaba por erigir um museu. No total são 83 objetos – fotos, pinturas, bitucas de cigarro, prendedores de cabelo – que representam cada um dos 83 capítulos do livro.

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Todo esse bulício vem se somar a um movimento que começou tímido nos últimos anos, mas que já mudou a cara de Istambul. A chamada cidade dos minaretes, a do Grande Bazar (um emaranhado de mais de 60 ruas e quase 5 mil lojas que se espalha por uma área de 300 mil metros quadrados), é agora também um lugar cheio de arranhacéus, hotéis-design, restaurantes contemporâneos estrelados. Os tradicionais cafés frequentados apenas por homens, marca de qualquer cidade muçulmana, integram a paisagem tanto quanto as discos badaladas das festas do jet set. As saias curtas convivem em harmonia com os lenços na cabeça. Modernidade e tradição se harmonizam no delicioso caos de Istambul.

Bules e narguilés à venda no Grande Bazar, em Istambul, na Turquia

Bules e narguilés à venda no Grande Bazar, em Istambul – Foto: Marco Pomárico

O pé no futuro da velha Constantinopla está presente nos diversos empreendimentos hoteleiros e bares que não param de surgir. Como é o caso dos ambientes minimalistas e de paredes roxas do hotel W, inaugurado há poucos meses. Ou das 15 suítes do Witt Istanbul, onde os ambientes debruçados sobre o Estreito de Bósforo – o lendário canal de 32 quilômetros de extensão que une o Mármara ao Mar Negro – foram recheados de móveis de formas orgânicas da badalada dupla de designers Seyhan Ozdemir e Sefer Çaglar, do escritório Autoban. Bares moderninhos, como o Otto, fizeram uma região historicamente decadente, Asmalimescit, se tornar cool. Sem contar os mix de restaurante e lounge, como é o caso do 360, um caixote de vidro que ocupa o último andar de um prédio com galerias de arte em plena Istiklal Caddesi, a mais movimentada avenida de Istambul; ou do Ulus 29, frequentado por modelos e atrizes internacionais. Na cena cultural, há museus e galerias que orbitam em torno do Istanbul Modern, o maior centro de arte contemporânea do país, inaugurado cinco anos atrás, que fazem com que Istambul seja apontada como um dos ambientes artísticos mais vibrantes do mundo.

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Com tudo isso, o que mais seduz os viajantes ainda é o que de imediato se associa aos tempos gloriosos da cidade. São os palácios (como o Dolmabahçe, que abrigou os últimos sultões do Império Otomano), as mesquitas (como a impressionante Mesquita Azul, recheada de mais de 20 mil peças de azulejos iznik, feitos a mão, e desenhos geométricos típicos da arte muçulmana), as ruínas e as estátuas romanas, registros dos três maiores impérios que fizeram da cidade uma metrópole em diferentes períodos da história. Mas também é muito difícil não se deixar seduzir pela bagunça das ruelas estreitas recheadas de vendedores, pelo odor das especiarias nas bancas do Grande Bazar, pelos banhos nos hamans. Istambul também brilha nos doces à base de mel de suas esquinas, doces que deixam no chinelo as criações de qualquer chef pâtissier de Paris; nos transes coreográficos dos dervixes rodopiantes, os religiosos sufis, uma vertente mais mística do islamismo. Embora levem uma vida devotada a Alá, muitos deles se exibem para turistas, em espetáculos que podem custar até € 15. Não é difícil apreender a essência plural e tolerante dessa fascinante cidade onde a Ásia se funde com a Europa, o Ocidente encontra o Oriente. Basta flanar por suas ruas.

Doce Safranbolu

Escondida no fundo de um vale no meio do caminho entre Istambul e a Capadócia, a pequenina Safranbolu é um tesouro pouco conhecido pelos viajantes. Ali está reunida a maior concentração de mansões tradicionais erguidas durante o Império Otomano, no século 14. Com menos de 40 mil habitantes, tem exatos 1 131 monumentos históricos tombados, e todo seu centro histórico foi declarado Patrimônio da Humanidade, pela Unesco, em 1994. Mergulhar em seu sobe e desce de ruelas estreitas ladeadas por palacetes de grandes vigas de madeira é submergir numa outra era, em que o ritmo é ditado pelas feiras de rua, pelo tempo de preparo dos doces artesanais turcos (e eles são especialmente bons por aqui). É uma deliciosa volta ao passado, e o melhor: com quase ninguém por perto.

A maioria das joias arquitetônicas de Safranbolu está concentrada na região do mercado, o bairro de Çarsi, onde a paisagem é um bem preservado emaranhado de casarões de dois ou três andares, dos séculos 18 e 19. Eles foram erguidos no período áureo da cidade, quando Safranbolu floresceu por sua localização estratégica na rota comercial que chegava à costa do Mar Negro. Também fica lá uma enorme mesquita, construída em 1796.

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Não é preciso mais que um ou dois dias para explorar as ruelas de Safranbolu. O ideal é passar pelo menos uma noite por lá, hospedado numa das muitas mansões históricas transformadas em hotéis – isso se você conseguir abrir mão de tal mordomia tão rapidamente. Em Safranbolu vale visitar os três casarões que hoje dublam como museus, flanar pelas ruelas e becos tomados pela colorida feira de rua e se entregar a prazeres, digamos, mais terrenos – as calorias do mais famoso doce do país chamado “delícia turca”. Safranbolu herdou seu nome da palavra saffron, açafrão, especiaria muito usada na produção dessa espécie de gelatina elástica de cores e sabores variados. É ela que enfeita dez de cada dez vitrines de vidro das simpáticas lojinhas do centro histórico, e fazem a alegria dos forasteiros.

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