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Um relato sobre a Itália na época da eleição do Papa Francisco

O belo, o estupendo, o maravilhoso, o saboroso e o aventureiro em Roma, Florença e nas vilas charmosas da Toscana

Por Adriana Setti
Atualizado em 2 jul 2021, 11h41 - Publicado em 3 abr 2013, 18h29

Anos atrás, vi chover no Deserto do Atacama, o lugar mais seco do mundo. Agora meu futuro hagiógrafo poderá relacionar mais um prodígio: ter visitado o Vaticano em pleno momento “non habemus papam”. Uma semana após a minha passagem pela Basílica de São Pedro, a fumata bianca anunciaria a eleição de Francisco, “um pontífice de origem piemontesa nascido na Argentina”, segundo a imprensa da Itália. Apesar da interdição da Capela Sistina e das hordas de jornalistas de todo o mundo pelas ruas, a vida em Roma durante a fugaz lacuna papal seguiu com sua habitual falta de normalidade. Não é comum, convenhamos, ver um anfiteatro de 2 mil anos de idade de pé no centro de uma rotatória. Tampouco é corriqueiro que uma rua qualquer desemboque em algo como a Fontana di Trevi. É por atributos como esses que a capital italiana segue sendo a comissão de frente de um país cujos cartões-postais estamparam as fotos de 850 mil brasileiros em 2012, fluxo 40% maior que o de 2011, segundo a autoridade nacional de turismo. E a invasão verde-amarela se deu, claro, a despeito da ausência de Bento ou da presença de Francisco.

De vespa

Ir a Roma e não ver o papa pode não ser questão de opção, como meu exemplo demonstra. Entretanto, agir em Roma como os romanos não se encerra no âmbito da Santa Igreja. Você pode, por exemplo, se possuir alguma valentia – ou nenhum juízo –, pilotar uma vespa, cuja frota na cidade anda pela casa das centenas de milhares. Era o que eu pretendia fazer, mas, com a chuvinha que insistia em cair, julguei mais conveniente montar na garupa de Valerio Cafo, fundador da Dearoma. Formado em história romana, ele faz tours em veículos emblemáticos, como a vespa vintage com que apareceu na porta do meu hotel.

Os grandes hits romanos estão ao alcance de qualquer um que abra um mapa e tome com disposição as ruas do centro. Por isso, o ragazzo motorizado sugeriu que conhecêssemos lugares aonde eu dificilmente chegaria por minhas próprias pernas. Alguns minutos depois, vi que nem tudo é tão óbvio na Cidade Eterna. Em uma rua sem saída atrás do Coliseu, a Basílica dei Santi Quattro Coronati brilha como uma das mais antigas de Roma – sua construção teve início no século 4. Para visitar o claustro, que liga a igreja ao mosteiro, é preciso tocar uma misteriosa campainha. Quem abre (ou não) a porta é a feira augustiniana Anna Maria, que vive encerrada ali desde 1971. Sua compreensível necessidade de se socializar facilita o engate da conversa. A mimosa que eu levava enroscada na bolsa, flor que me foi oferecida pelo Valerio em razão do Dia Internacional da Mulher, a fez lembrar sua Sicília natal. De hábito preto e cinematograficamente curvada para a frente, ela então desandou a falar sobre o cheiro do pão amassado por sua nonna a cada manhã. Após nos despedirmos, Valerio filosofou: “Ser italiano é isso: descrever um pão saindo do forno como a criação de uma obra-prima”.

Falando de rompantes de italianidade, eu até gostaria de poder relatar fortes emoções em meio ao trânsito caótico. Mas meu giro de vespa esteve menos para Hollywood e mais para um filme de Nanni Moretti. Precisamente para Caro Diario, no qual o protagonista (o próprio diretor) transita por uma Roma pacata enquanto ideias aleatórias fluem por sua cabeça. Na minha vespa também reinou a tranquilidade, mesmo aproveitando muito bem Roma.

Ainda que as scooters possam circular pelas zonas de tráfego restrito – uma vantagem e tanto na Itália –, embrenhar-se pelo novelo de ruas estreitas e congestionadas do Centro Histórico é mais prazeroso a pé (veja uma sugestão de tour na revista impressa ou na versão digital do iba). De motorino, opte pelas avenidas mais amplas na hora de atravessar o coração da cidade. Comendo pelas bordas, Roma pode também ser bucólica, como na subida do elegante Monte Aventino, onde fica o Giardino degli Aranci (Jardim das Laranjas), um magnífico parque de onde se tem uma vista peculiar da cúpula da Basílica de São Pedro. Dali, por certo efeito de ilusão de óptica, ela parece ainda maior. Ao lado, outra visão surrealista da mesma obra projetada por Michelangelo: o buraquinho da fechadura do portão da sede da Ordem Soberana Militar de Malta serve como moldura perfeita para o topo da basílica. Foi incrível também poder rodar pela Via dei Fori Imperiali, topar com o Coliseu e depois circulá-lo. Achei ótimo estar motorizada para dar a volta completa no Circo Massimo. Tive o privilégio de encarar o Vaticano de frente, não pelas calçadas laterais dos mortais pedestres, adentrando a Piazza Pio 12 pela Via della Conciliazione. Isso sem falar em quão poético foi percorrer longos trechos da Lungotevere, às margens serpenteantes do Rio Tibre.

Mas nada pode ser mais suave do que vencer a hora e meia de deslocamento de Roma a Florença em um dos vagões do trem-bala fecciarossa (Flecha Vermelha). A mudança de ares é também um salto na linha da história da arte: a predominância do barroco dá lugar, em Florença, a um mergulho de cabeça no Renascimento. E, ainda que a capital da Toscana pareça compacta à primeira vista, nós, pobres turistas, podemos ficar aflitos com a impossibilidade de fruição de tanta beleza. Seus museus transbordam, fazendo com que obras-primas tomem praças, ruas e cantos. Os túmulos de Dante Alighieri, Maquiavel, Galileu Galilei e Michelangelo estão todos sob o mesmo teto, na Basilica di Santa Croce, apenas uma das igrejas-museus da cidade. A espera para visitar a Galleria degli Uffizi e a Galleria dell’Accademia chega a várias horas. Mas as pessoas aguardam humildemente. Não é sempre, afinal, que se pode contemplar O Nascimento de Vênus, de Botticelli, ou Davi, de Michelangelo.

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Alma toscana

Não sei se sou herética o suficiente ao afirmar que foi com certo alívio que deixei Florença para trás, descansando a mente à medida que os arredores industriais da cidade se dissolviam em campos verdes. Para isso, agora de carro alugado, preferi a rodovia SS435 à autopista A11. Fugir das vias expressas é essencial para curtir uma das coisas que a Toscana tem de melhor: o caminho. Mas caia na estrada em doses homeopáticas, escolhendo duas ou três bases para a partir delas fazer viagens curtas.

Depois de Pistoia, onde um monumento tributa os nossos bravos pracinhas mortos na Segunda Guerra, a Toscana de Instagram começa a tomar forma, com seus ciprestes espetados no horizonte e seus vilarejos que se equilibram no topo das colinas. Um deles, Montecatini Alto, vale algumas horas de atenção. Pequenino, tem seu centrinho medieval conectado à vila de Montecatini Terme (famosa por suas águas termais) por um funicular antiguinho. A vista durante o trajeto compensa o possível atraso para chegar a Lucca, a 85 quilômetros de Florença.

Nós, os Setti, temos raízes nos arredores dessa preciosa cidade que também pariu figuras de maior relevo, como o compositor Giacomo Puccini. Mas, com ou sem vínculos afetivos, Lucca é arrasadora. Um amplo calçadão sobre a muralha dos séculos 16 e 17 permite dar a volta completa ao redor do Centro Histórico de bici (€ 3 a hora), xeretando o que acontece em suas vielas, pátios e telhadinhos. Com os pés no chão, prefira flanar pela Via Fillungo e depois ver a Piazza Anfiteatro, antigo anfiteatro romano, como o nome indica. As casas coladinhas umas às outras formam um peculiar desenho oval e hoje abrigam restaurantes e lojinhas. Um charme.

Cortona sem fama

Ao deixar Lucca, desobedeci a meus dogmas e sucumbi a um trecho da autopista A12 para vencer rápido 95 quilômetros e chegar a Volterra ainda com a luz do dia. A acelerada valeu a pena e, depois de um dia chuvoso, uma nesga de sol incidiu sobre a colina que abriga a cidadezinha etrusca, tingindo o céu de rosa. Larguei a mala no hotel e percorri o lugarejo com fúria, varando seus becos e ladeiras até deparar com as ruínas de um anfiteatro romano iluminado. Volterra é tudo aquilo que Cortona seria se a escritora americana Frances Mayes não tivesse comprado uma casa ali nem relatado ao mundo suas estripulias sob o sol da Toscana: um lugar com vida normal. Enquanto Cortona se transformou em uma “vila- butique”, Volterra ainda tem suas sapatarias, padarias, açougues e mercadinhos. San Gimignano, a 30 quilômetros de Volterra, é outra celebricity tão linda e perfeitinha que quase não parece de verdade. No caminho até lá, porém, não faltou realismo. Saindo de Volterra, topei com um desmoronamento na estrada. O jeito foi desviar por uma salada de vicinais, contornando a reserva natural de Castelvecchio. Sem querer, acabei passando por um dos trechos mais cênicos de toda a viagem, entre campos quadriculados com vários tons de verde, ora permeados por linhas de vinhedos ressecados pelo inverno, ora de frondosas oliveiras centenárias – girassóis e outras flores campestres esperam você se a viagem for a partir de maio ou junho. Louvado seja o inventor do GPS: há dez anos, rodei a Toscana sem ele e me deixei levar pelas autopistas por não conseguir achar o caminho das estradas mais rurais (e belas) da região.

Conheci San Gimignano e as 14 torres que a tornam inconfundível em 2003, mas não me pareceu má ideia provar novamente as delícias da sua Gelateria di Piazza, uma das grandes atrações da cidade. Há quem diga que essa é a melhor gelateria do país, algo impossível de afirmar no Reino Encantado dos Sorvetes Perfeitos, a.k.a. Itália (menção honrosa à Il Gelato di San Crispino, em Roma, e à Santa Trinita, em Florença). De qualquer forma, è vero: aqui o nirvana vem a cada lambida. Mas, a caminho da gelateria, não pude evitar a feirinha de comida e o sanduíche de porchetta (carne de um porco inteiro assada) que se interpuseram no meu caminho. Arrematei a iguaria com um pacote de figos secos até conseguir, enfim, chegar a meu objetivo e pedir uma bola de creme de açafrão e outra de gorgonzola com nozes. Qualquer um em bom juízo deveria se dar o direito a um surto como esse em uma viagem por um dos lugares mais gastronomicamente interessantes do mundo.

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Conhecida como cucina povera (cozinha pobre), a culinária toscana tem na simplicidade o seu bastião. Sem molhos complicados ou pirotecnias, prima pelo frescor dos ingredientes: alcachofras, tomates, azeite de oliva, favas, berinjela, carne de porco e de javali… Rebuscados, esses, sim, são os seus vinhos. A região é a casa dos vinhedos de Chianti, cujas estrelas são os supertoscanos. É ainda berço do brunello, vinhaço produzido nos arredores de Montalcino, meu destino após o festim em San Gimignano.

Vela elétrica

Mas Montalcino também é gabaritada em assuntos transcendentais. A 10 quilômetros do centro da cidade, a Abadia de Sant’Antimo se destaca da paisagem pelas paredes de pedras pálidas e pelo campanário adornado com discretos e belos relevos. Na missa das 9h15, a luz que entra pelas janelas do edifício do século 12, a fumaça do incenso e o canto gregoriano entoado por sete fades de cabeça raspada criam uma atmosfera mística, particular. Estive lá em uma quarta-feira, mas é a missa dominical que chama mais atenção e ostenta a cotação máxima – quatro velinhas pela ambientação e quatro missais pela cerimônia – no Guida alle Messe, uma espécie de Guia Michelin da missa italiana (sim, isso existe). O autor é um carola radical, Camillo Langone, que deseja livrar as igrejas da frivolidade das velas elétricas – o que não seria mau.

Se me falta bagagem eclesiástica para confirmar o acerto da avaliação de Langone, nos domínios dionisíacos eu até que me viro bem. Ao degustar três taças de brunello às cegas, fui capaz de indicar qual deles era o de 2007, uma safra felicíssima para os brunello. Em Montalcino, cotaria com cinco garrafinhas a ambientação de alguns espaços de degustação. Como o da Enoteca La Fortezza, que funciona dentro de uma fortaleza medieval e na qual se é atendido por sommeliers gabaritados.

Usar esse Éden, essa Cocanha do vinho como base foi estratégico: não precisei dirigir depois de cada degustação. Mas Montalcino é uma deliciosa vila de ares provincianos e, apesar dos tesouros de suas adegas, também muito indicada para abstêmios. Geograficamente, a cidadezinha está a um pulo de Pienza, famosa por sua Piazza Pio II, em estilo renascentista, e seu queijo pecorino, e a outro pulo de Montepulciano. Igualmente célebre pelo tinto produzido em seus arredores, Montepulciano também é um pequeno deslumbre, com praças forradas de ladrilhos vermelhos, fontes, palazzos, igrejas e mais enotecas, como a Ricci, em um palácio do século 15. Em seus subterrâneos, verdadeiras catedrais góticas forradas de barris de carvalho se revelam à medida que se desce um, dois, três andares, até culminar em um lindo espaço de degustação.

Saindo de Montepulciano, o caminho de volta a Florença passa por nada menos que Siena, sua rival histórica, em cujo Duomo as suas pernas certamente tremerão sob a beleza da cúpula decorada e sobre o piso de mármore com 56 cenas históricas e bíblicas. No batistério, outro golpe: a pia batismal com relevos de Donatello. Eu arremato com um tiramisu e termino a viagem com gloriosos 70 quilômetros pela Via Chiantigiana (a SS222), que atravessa o coração da região de Chianti: outro candidato a trecho de estrada mais bonito da sua vida.

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. . : Mão fechada: dicas para gastar pouco na Itália : . .

1. Beba da fonte A água “torneiral” italiana é potável e… grátis

2. Dá-lhe vinho Uma taça do vino della casa sai mais barato do que refrigerante

3. Beba mais vinho Degustações na região de Chianti são gratuitas

4. Vá de shuttle Do aeroporto de Roma ao hotel por € 25: airportshuttle.it

5. Fique de pé No balcão, o cappuccino e o panino custam menos

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6. Passe fácil Tire vantagem do Roma Pass (romapass.it) e do Firenze Card (firenze card.it)

7. Sem taxa O valor do IVA pode ser reembolsado na saída do país. Solicite o formulário nas lojas

8. Happy hour Das 18h às 21h, muitos bares servem comidinhas grátis com a bebida

O cenário memorável de San Gimignano, na Itália

O cenário memorável de San Gimignano – Foto: LatinStock/Frans Marc Frei/Corbis

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. . : Mão aberta: o upgrade que satifaz : . .

1. Vista aérea Veja a Toscana de balão (ballooningintuscany.com; € 260)

2. Rei por um dia Hospede-se em um legítimo castelo toscano: agriturismo.net/castle

3. De chofer Alugue um carro com motorista na Toscana (executivedrive.it)

4. Sem muvuca Veja a Capela Sistina fora do horário normal (italywithus.com; € 350)

5. Brunello para viagem As enotecas de Montalcino não cobram frete para enviar caixas do vinho para o Brasil

6. Fatto in Italia Na Via dei Condotti, em Roma, estão as lojas de grife, com preços melhores que os do Brasil

7. Alta cozinha Jante memoravelmente no romano La Pergola (omecavalieri.it) e no florentino Enoteca Pinchiorri (enotecapinchior ri.com), em Florença

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