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A natureza da ilha de São Miguel, a principal dos Açores

Dona de lagoas majestosas e cenários que parecem saídos de um descanso de tela de computador, a Ilha de São Miguel nem parece que fica neste mundo

Por Camilla Ginesi
23 ago 2019, 15h59

Quem já visitou Portugal “continental”, como é chamado o país deixadas de fora as ilhas adjacentes, pode ter percebido uma coisa sobre o Arquipélago dos Açores: lá, tem muitas vacas. Como sacar isso? É simples. A maioria das marcas nacionais de laticínios exibe nos seus rótulos frases como “Natural dos Açores” e “Enriquecido pela natureza dos Açores”. Ao se sentar numa tasca de Lisboa, por exemplo, é alta a probabilidade de o garçom oferecer, para acompanhar a cesta de pães de entrada, um pedaço de “queijo da ilha” (Ilha de São Jorge, localizada no centro do arquipélago) ou algumas minimanteigas açorianas com vaquinhas na embalagem.

Não que seja raro encontrar embalagens com vacas pastando mundo afora. Mas, quando cheguei a Ponta Delgada (principal cidade de São Miguel, a maior das nove ilhas dos Açores), essa representação correspondeu fielmente à realidade. Desde que deixei o Aeroporto João Paulo II (ou simplesmente aeroporto de Ponta Delgada), reconheci a cena da caixinha de leite reproduzida por toda parte.

As famosas vacas malhadas dos Açores (Atlantide Phototravel/Getty Images)

E não só: também vi lagoas inacreditáveis – azuis, verdes, em crateras vulcânicas, cercadas de gêiseres, cobertas de neblina -, plantações de chá e de “ananás” (abacaxi em Portugal), tanques gigantes de águas termais, grandes murais de arte urbana e golfinhos saltitantes de diferentes espécies no oceano.

A Ilha de São Miguel fica na parte oriental do arquipélago, tem 745 km² (algo como Floripa e Ilhabela somadas) e abriga 137 mil habitantes, pouco mais da metade de toda a população açoriana. A principal atividade econômica da ilha é o agronegócio, em especial – ah, vá – a produção de laticínios. Isolada no Atlântico, está a 2 horas e 15 minutos de avião de Lisboa, de onde recebe meia dúzia de voos diários, e a quase 5 horas de Boston, nos EUA, com a qual se conecta em nove frequências semanais.

A paisagem é de difícil descrição. Com colinas do tipo papel de parede do Windows ladeadas por cercas vivas de hortênsias azuis, parece moldada pelo homem de tão perfeita – e, de certa maneira, foi. O arquipélago, todo formado por atividade vulcânica, teve grande parte da vegetação e da fauna atuais introduzida pelos povos que lá se estabeleceram a partir do século 15, principalmente os portugueses, mas também os espanhóis, os franceses e os flamengos, entre outros.

Hortênsias azuis emoldurando um dos muitos morros verdejantes de São Miguel (Rui Almeida Fotografia/Reprodução)

As vacas vieram junto e, pelo visto, se adaptaram muito bem. Outro exemplo visível da intervenção humana são os funcionários que limpam e podam a floresta, sempre presentes na paisagem com seus coletes fluorescentes.

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Para entender o arquipélago, é preciso recorrer também à história recente. Há 43 anos, no dia 2 de abril de 1976, os Açores e a Ilha da Madeira passaram a ser duas regiões autônomas da República Portuguesa. Desde então, por meio de seus governos regionais e de suas assembleias legislativas, ganharam autonomia política, legislativa, administrativa, financeira e patrimonial. Ainda assim, pertencem a Portugal. 

Além de São Miguel, compõem os Açores as ilhas de Santa Maria, Terceira, Graciosa, São Jorge, Pico, Faial, Flores e Corvo. A Terceira, onde fica o Algar do Carvão (uma cavidade num vulcão adormecido acessível a turistas), e a Flores, do famoso Poço do Bacalhau (uma piscina natural com cascata de 90 metros), estão entre as duas mais visitadas do arquipélago.

A mais visitada de todas, São Miguel, foi a que eu conheci. Passada a inocência das vaquinhas no relvado, Açores revelou outra face da sua personalidade no desejo de se separar de Portugal, como eu ouvi dos habitantes e vi em cartazes e pichações pelas ruas. Lembra até a Catalunha, a comunidade autônoma e separatista da Espanha.

Hortênsias florescendo no Lago dos Açores
Hortênsias florescendo na Lagoa das Sete Cidades (Sorin Rechitan / EyeEm/Getty Images)

Outra semelhança com os catalães é a forte influência da língua francesa. Se no território espanhol essa presença é visível na grafia, na língua portuguesa de São Miguel ela vai parar no sotaque: como os franceses, os micaelenses muitas vezes fazem biquinho ao falar o “u” e omitem a consoante final das palavras. “Falar”, por exemplo, vira “falá”. Parece estranho? Pois é fofinho.

Apresentações feitas, eram 11 e pouco da manhã quando meu voo saído de Lisboa “aterrou” no aeroporto pequeno e simpático de Ponta Delgada. Peguei um shuttle da companhia UTC Azores para a região central da cidade e, dez minutos depois, já deixava a mala no Vila Nova Hotel

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Almocei qualquer coisa no lobby bar (acompanhada de uma Kima, o imperdível refrigerante local de maracujá) e decidi usar a tarde restante num tour de jipe pela freguesia de Sete Cidades, no noroeste da ilha. Fiz o passeio pela Greenzone, aproveitando o fato de que os motoristas deles também são guias. Outra opção seria alugar um carro 4×4, já que a área é montanhosa e tem estradas muitas vezes de difícil acesso. Ônibus também fazem o trajeto, mas levam o dobro do tempo e são pouco frequentes.

Na região está o maior reservatório de água doce do arquipélago, a Lagoa das Sete Cidades, localizada no fundo de uma caldeira vulcânica ativa e dividida por um canal em duas partes, uma azul e outra verde-esmeralda. As lagoas gêmeas têm coloração diferente porque um lado reflete o céu, e o outro, a floresta. Uma explicação mais poética é dada pela lenda que diz que metade da lagoa represa o choro de um pastor de olhos azuis que vivia um amor proibido com uma princesa, e metade vem das lágrimas dos olhos verdes da própria princesa.

A Lagoa das Sete Cidades, que espelha a mata e um lado e o céu do outro – ou os olhos verdes e azuis de dois amantes, se você preferir a lenda (Anik Messier/Getty Images)

Vestígios da vegetação primitiva do arquipélago são visíveis nos azevinhos, angélicas e margaridas do entorno, e a panorâmica do Miradouro da Vista do Rei é de bater recorde de likes no Facebook e no Instagram. Também é possível observar aves migratórias como o melro-preto e praticar stand-up paddle e canoagem no espelhão-d’água.

No mesmo tour, passamos pela freguesia dos Mosteiros, conhecida pelas piscinas naturais e praias de areia escura lotadas no verão. No mar, a cerca de 1 quilômetro da costa, quatro grandes rochedos de formas peculiares fazem a paisagem ficar na memória. A última parada do dia foi no hotel abandonado Monte Palace, um dos primeiros cinco-estrelas da ilha. O edifício de 88 quartos (muitos deles com vista espetacular para a Lagoa das Sete Cidades) fechou as portas em 1991, apenas dois anos depois da inauguração.

Mosaico do catalão Javier de Riba no abandonado Hotel Monte Palace (Sara Pinheiro/Reprodução)

Hoje, o que restou dele é usado para festas informais da moçada moderninha, jogos de paintball e até treinamentos da polícia local. Diversos artistas urbanos, como o catalão Javier de Riba, deixaram desenhos por lá – o dele é um mosaico gigante, no chão do átrio, imitando piso hidráulico.

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Que um certo prefeito brasileiro não nos ouça, mas a ilha inteira é decorada com murais grafitados e outras intervenções artísticas. Uma das mais memoráveis é a do português Alexandre Farto, o “Vhils“, na fachada da galeria de arte, bar e discoteca Arco 8, em Ponta Delgada. São dois rostos bem realistas na parede, ambos de figuras locais, que o artista produziu ao descascar a tinta e cinzelar o reboco, como é o seu estilo – nos Açores, em Lisboa, no Rio, em L.A. ou onde quer que tenha deixado a sua obra. O espaço também promove shows e noites de cinema.

Rostos locais gravados na fachada do bar Arco 8, obra do português Vhils (Silvia Inacio/Flickr)

Dediquei o dia seguinte à área do Vale das Furnas, no leste da ilha. Também optei por conhecer a região de jipe, com a mesma Greenzone. As Furnas são a expressão máxima da atividade vulcânica na ilha, com inúmeros gêiseres, tanques, lagoas, piscinas e poças de águas termais. 

O primeiro pit stop, no entanto, foi a 20 minutos do vale, na fábrica e plantação de chá Porto Formoso, na freguesia de mesmo nome. A Porto é vizinha da Gorreana e, juntas, são as duas únicas produtoras de chá da Europa. A visita é gratuita e vale a pena, tanto pela degustação quanto pela paisagem, formada por canteiros alinhados como um grosso e fofo veludo verde.

Já nas Furnas, visitei o Parque Terra Nostra (8 euros), mistura de jardim botânico e termas – há ainda um hotel e um restaurante ali. Fiquei cerca de uma hora submersa até o pescoço num tanque gigante de água férrea castanha a 40°C – com os 10°C que fazia do lado de fora, acabei preterindo o jardim botânico.

Palmeiras do jardim botânico do Parque Terra Nostra, complexo do Vale das Furnas que reúne tanques de águas férreas a 40°C, hotel e restaurante (aragami123345/iStock)

E o pulso ainda pulsa

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De lá, segui para o restaurante Tony’s, especializado no “cozido das Furnas”. A receita consiste em uma mistura saborosa de carnes (de vaca, porco e frango), linguiça, batata, inhame, cenoura, repolho e couve (sim, tudo isso) cozida por oito horas pelo calor do vulcão em uma panela enterrada no solo.

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Terminei o dia na Lagoa das Furnas, me revezando entre dar comida aos patos (são dezenas à espera dos turistas) e assistir à preparação dos cozidos. Enquanto as panelas são enterradas, o vapor e outros gases sobem dos gêiseres e fumarolas. E, se ao cenário não falta um “incenso”, também não falta uma igreja, a Ermida de Nossa Senhora das Vitórias, uma capela neogótica do século 19 erguida nas margens da lagoa – cuja água, de tão verde, deve ser benta.

Fonte em Furnas (Divulgação/Divulgação)

Na manhã do último dia, ainda fiz um passeio de barco para observar baleias e golfinhos, no tour da Picos de Aventura. Fui na esperança de ver um cachalote, o imenso cetáceo que inspirou o romance Moby Dick, do americano Herman Melville, mas vi apenas dois tipos de golfinho. A cena com dezenas deles pulando no meio do Atlântico não merece crítica, não me entendam errado. É que, mal-acostumada com as surpresas de São Miguel, só se uma baleia saltasse bem na nossa frente para eu voltar a me impressionar.

Guia VT

São Miguel 

(Bruno Algarve/Viagem e Turismo)

Ficar

Bom de design, o Azor, em Ponta Delgada, é um dos melhores cinco-estrelas do arquipélago. Tem piscina e bar panorâmicos e mercearia de queijos e vinhos açorianos. O Terra Nostra Garden, dentro do jardim botânico e das termas de Furnas, é o lugar certo para quem gosta de andar de roupão. O Vila Nova, em Ponta Delgada, é central e quebra bem o galho. Para economizar, a Pousada de Juventude de Ponta Delgada é um casarão cercado de verde que tem quartos compartilhados e privativos.

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Atenção: os preços podem cair até pela metade a partir de setembro, outubro ou novembro, dependendo do hotel.

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Comer

O badalado Cais 20, em Ponta Delgada, serve frutos do mar frescos (garoupa, polvo) até as 5 da madruga. Outro queridinho dos micaelenses é o bar de tapas A Tasca, também em Ponta Delgada. No cardápio, mil-folhas de bacalhau e polvo assado. Para provar o “cozido das Furnas”, é preciso reservar no Tony’s. Já o bufê do Raião, na Candelária, serve comida da Terrinha, como bacalhau e porco à alentejana.

Pra tomar uns capotes

Os suvenires mais comuns de São Miguel são os licores de frutas – maracujá, banana, ananás etc. -, às vezes vendidos em garrafas decorativas. A fabricante A Mulher de Capote faz visitas guiadas à produção

Passear

São visitas obrigatórias a Lagoa do Fogo, uma imensidão azul-royal dentro de caldeira vulcânica muitas vezes coberta por neblina, o que cria um cenário singular, e a Lagoa das Sete Cidades, azul e verde, em que é possível praticar stand-up paddle e canoagem. Não perca a vista da lagoa do Monte Palace Hotel

Na região das Furnas, duas opções de termas são o Parque Terra Nostra, que também é jardim botânico, e a Poça da Dona Beija, batizada em homenagem à novela brasileira. Ali perto fica a fábrica de chá Porto Formoso, uma das duas únicas produtoras de chá da Europa. 

No nordeste, o Farol do Arnel, o primeiro dos Açores, mantém sua função até hoje. Se não quiser alugar carro, os passeios de jipe da Greenzone e da Futurismo levam às atrações. Vista roupas e tênis confortáveis (anda-se muito) e leve capa de chuva, água e protetor. 

Outros passeios essenciais são para observar baleias e golfinhos e pelo Ilhéu de Vila Franca, uma ilhota a 500 metros da costa. A Picos de Aventura faz ambos.

Profano

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Festa do Espírito Santo (Divulgação/Divulgação)

Prepara!

Quando ir

De maio a agosto, os meses quentes. Entre novembro e fevereiro, chove mais. Como o clima varia muito no arquipélago, pode chover, ventar e fazer sol forte no mesmo dia – é imprevisível.

Dinheiro

Euro. Leve em espécie, já que só os lugares mais turísticos aceitam cartão de crédito (quando aceitam).

Língua

Português (com sotaque francês).

Fuso

+ 3h (de Brasília) no horário de verão de Açores; + 1h no horário de verão do Brasil.

Documentos

Não é necessário visto para brasileiros.

Como chegar

Não há voos diretos do Brasil. É preciso fazer escala em Lisboa, de onde saem os voos diretos. 

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