Continua após publicidade

A incrível experiência de ficar 8 dias em um barco pela Amazônia

Uma imersão intensa pela Amazônia, com aprendizados na selva, mergulho no Rio Negro, visita aos ribeirinhos e nenhum contato com a vida exterior

Por Cindy Wilk
19 nov 2019, 19h05

O trajeto entre Manaus e a cidade de Novo Airão dura apenas duas horas e meia de carro, por uma estrada que ganha mais e mais buracos à medida que se afasta da capital amazonense. A ruptura do sinal de celular é brusca: basta sair do perímetro urbano – e não adianta chacoalhar o telefone esperando por um risquinho de conexão com o resto do mundo. Mas isso parecia só incomodar a mim. 

Além de Fernando, o motorista, estavam no carro a advogada Ed, de Salvador, e o fotógrafo Hamad, do Kwait. Ela, numa escapsada de uma semana do trabalho, queria fugir de qualquer notícia. Ele, chegando à metade de sua viagem de dois meses pelo Brasil, incluindo um mergulho no Carnaval carioca, buscava o silêncio da floresta. Outro carro, à nossa frente, trazia um casal de canadenses, o médico infectologista aposentado Robert e sua esposa, Carol. Eles já haviam rodado bastante por aí, mas a Amazônia era a última fronteira.

Novo Airão é o destino final para muita gente que visita a Amazônia. A simpática cidadezinha de cerca de 18 mil habitantes é o CEP de alguns dos melhores hotéis de selva amazônicos. O Anavilhanas Jungle Lodge está a 10 quilômetros do Centro; já o Mirante do Gavião fica ainda na cidade, mas no meio do mato. 

O que ambos têm em comum, além da arquitetura rústico-muito-chique, é a experiência na selva, aquele cardápio clássico que inclui explorações na floresta, saídas noturnas de barco para ver bichos, pesca de piranha, passeios de canoa pelos igarapés e até, na época da vazante, um dia na praia. Afinal, a localização é estratégica: o quintal de Novo Airão é o Parque Nacional de Anavilhanas, arquipélago formado por mais de 400 ilhas espalhadas pelo Rio Negro.

O caleidoscópio hipnótico formado da mata refletida nas águas do Rio Negro (Cindy Wilk/Viagem e Turismo)

Para nós, entretanto, Novo Airão seria apenas o ponto de partida para uma aventura mais ambiciosa: passar oito dias embarcados, deslizando suavemente pelo Negro, o segundo maior rio em volume de água do mundo (atrás apenas do Amazonas), na direção oposta a Manaus. No trajeto, além de Anavilhanas, estavam o Parque Nacional do Jaú e a Reserva do Xixuaú, acessível pelo Rio Jauaperi, pequeno afluente do Negro que marca a divisa dos estados do Amazonas e de Roraima. Diluídas nessa semana de viagem, viriam todas as experiências de um hotel de selva. Mas o hotel, nesse caso, passeava com a gente.

Nossa casa naquela semana era o Jacaré-Açu, um confortável barco de madeira no tradicional estilo regional amazonense que, junto com outra embarcação menor, o Jacaré-Tinga, pertence à Katerre, empresa que promove expedições regulares pela região do Rio Negro. O Jacaré-Açu tem 64 pés e três andares. No superior, há um deque com poltronas de madeira, redes e, de brinde, uma brisa amazônica. Nos outros dois deques estão as oito suítes, todas com ar-condicionado, camas de casal, banheiros com chuveiro quente e lençóis de algodão egípcio. Frescuras que aparentemente não combinariam com o cenário amazônico – mas que podem ser um incentivo para se lançar a essa aventura quando não se tem mais 20 anos. 

Continua após a publicidade

As refeições a bordo são um passeio pelos ingredientes regionais. Há sempre um peixe recém-saído das águas como opção – pirarucu, tucunaré, tambaqui, matrinxã… Do pato no tucupi com jambu que adormece a língua ao açaí salgado para comer com peixe, da mousse de cupuaçu ao fruto do tucumã consumido com cafezinho. Tudo o que saía da cozinha de Leda e Diana (treinadas pela chef Débora Shornik, que comanda o Caxiri, em Manaus, além do Flor do Luar e do Camu-Camu, em Novo Airão) tinha a simplicidade local e a universal capacidade de surpreender gente de São Paulo ao Kwait.

Rapidamente percebemos que, enquanto a cozinha traduzia a Amazônia em sabores, Samuel, nosso fantástico guia, se encarregava de verter a floresta em palavras. Naquela mesma tarde zarpamos, com a lancha pequena que servia de apoio ao Jacaré-Açu, para explorar os igarapés e igapós de Anavilhanas. Igarapés são pequenos braços de rio, e igapó, a floresta alagada nas suas margens.

Era fevereiro, meados da estação chuvosa, o tal do inverno amazonense. As águas escuras do Negro já haviam subido 6 metros em relação ao auge da estação seca, entre outubro e dezembro; no final de junho, ponto máximo da cheia, apenas o topo das árvores fica visível. É a melhor época para ver pássaros e outros animais, que acabam mais concentrados na parte seca, e para navegar floresta adentro em pequenas embarcações.

A proa do barco, Rio Negro adentro (Cindy Wilk/Viagem e Turismo)

Percorrer esses pequenos canais rasgando o Rio Negro tem efeito hipnótico: a vegetação refletida no escuro das águas vira um caleidoscópio. E, por ali, nada de mosquitos. A decomposição de nutrientes no solo torna o PH dessas águas tão ácido que funciona como repelente natural. 

E um banho no meio do Negro, coisa que fizemos ainda nesse primeiro dia, dá a sensação de mergulhar numa imensa xícara de chá. Abrir os olhos debaixo d’água é outra experiência estranha. Spoiler: se, àquela altura, eu já tivesse visto os amigos jacarés ou pescado piranhas, não teria pulado naquelas águas nem na marra.

Continua após a publicidade

Pausa em terra firme

O primeiro indício real de que aquilo era selva de verdade e não o Animal Kingdom viria naquela mesma noite. A proposta era quase infame: trocar a deliciosa cabine do Jacaré-Açu por uma rede no Mirante do Madadá, ainda em Anavilhanas. Seria a única chance de dormir em terra firme, mas eu não contava com uma imensa tarântula peluda como companheira. “Não é venenosa”, garantiu Samuel. A experiência serviu também para entender que o que os amazonenses chamam de “inverno” é realmente friozinho no auge da madrugada.

A região do Madadá não é segredo para quem se hospeda nos hotéis de selva de Novo Airão. No coração de Anavilhanas, o lugar é um bom laboratório de espécimes da selva, além de ter uma grande variedade de paisagens, como grutas impressionantes. Foi ali que Samuel, descendente dos índios Baniwa, por parte de mãe, e Baré, por parte de pai, fluente em nhengatu e tucano (segundo ele, um “inglês” falado como segunda língua por várias tribos), fez seu show.

O superguia Samuel Basílio (Cindy Wilk/Viagem e Turismo)

Em português e inglês perfeitos, demonstrava como fazer fogo com breu branco, também usado como perfume na indústria cosmética, ou como passar formigas elétricas na pele para disfarçar o cheiro “de gente” e não chamar a atenção dos bichos. Levou picada de mosquito ao se afastar do rio? Andirá é cicatrizante. Ficou com sede? Basta passar o facão no pau-d’água. Precisa de arco e flecha? Anote a receita: espinha de curupira para a haste da flecha, palmeira de inajá para a ponta, pau d’arco ou cabibi para o arco, fibra de envira para a corda e arremates. Em minutos, arco e flecha se materializam.

Mistérios & Surpresas

E a nave vai em direção ao Parque do Jaú, e aparecem histórias curiosas… Velho Airão, nascida no Brasil Colônia como missão jesuítica, já foi entreposto comercial no ciclo da borracha, em fins do século 19, e é hoje uma cidade fantasma, cheia de ruínas. Tem um só morador: o eremita japonês Shigeru Nakayama, de Fukuoka, que chegou ali em 2001 e assumiu o posto de guardião das ruínas. Perto de lá, um sítio arqueológico desaparece na cheia do rio e guarda petróglifos ainda pouco estudados.

A bela samaúma gigante do Parque do Jaú (Cindy Wilk/Viagem e Turismo)

A vida a bordo seguia boa demais, com pequenas surpresas, como ter o barco recepcionado de manhã por um simpático filhote de jacaré ou ver um pacu aterrissar ao lado do facão da cozinheira Diana. Já as grandes surpresas aconteciam nas saídas noturnas na pequena lancha. 

Continua após a publicidade

Eu já havia feito outras focagens de jacaré, em que os guias apontam a lanterna para as margens do rio para identificar os animais e até pegar um deles – em geral, filhote – para o turista ver de perto. Mas ainda não tinha visto um guia literalmente falar com jacarés. E receber resposta, no mesmo som gutural da pergunta. Em algum momento do passeio, Samuel diz, ainda, “Estou sentindo cheiro de cobra”. De fato, havia uma jiboia pendurada na árvore ao nosso lado.

Gente de Xixuaú

No quarto dia de viagem, Tito, o capitão, conduz o barco para outro cenário. Do largo Rio Negro, passamos a navegar no Jauaperi, mais estreito e cheio de ilhotas. Entramos na Reserva do Xixuaú, onde veríamos as histórias humanas que faltavam para completar a aventura. A Vila de Moura é a porta de entrada ao Jauaperi e o único ponto da região ao qual se chega em barcos de linha, um trajeto de 24 horas a partir de Novo Airão. 

O lugar tem 564 habitantes, 232 dos quais frequentam a escola local, que vai até o ensino médio. Maria Nazaré da Silva Barbosa, a Tia Nazaré, é copeira e também aluna. Aos 61 anos, sonha ser professora. Percorremos a vila de ruas poeirentas, galinhas soltas e casinhas coloridas com um objetivo: achar o mercadinho que vende material de desenho para levar aos alunos de escolas de lugares ainda menores, nas profundezas do Xixuaú.

Foram horas de navegação, conversas deliciosas e churrasco de matrinxã no deque, até chegarmos, no final daquela tarde, à Vila do Xixuaú, uma comunidade de 15 famílias e a tal escola. O Xixuaú está se organizando para receber turistas. Cerca de 50 pessoas estão envolvidas com uma cooperativa que mantém uma pousada e faz passeios na região. Na liderança da operação bancada por ONGs italianas estão o nativo Francisco Alves dos Santos Nascimento e sua esposa, a bióloga italiana Emanuela Evangelista, que veio de Roma há 25 anos estudar as ariranhas e ficou.

Criançada na vila do Xixuaú (Cindy Wilk/Viagem e Turismo)

Na escola que leva o nome do pai de Francisco estudam 14 crianças, entre 4 e 11 anos, sob a batuta do professor Diogo Pacheco, que deixou esposa e filho em Novo Airão e topou passar o ano letivo ali pela “facilidade de comunicação”, o que, na prática, significa um orelhão da Embratel liberado para chamadas, no centro do vilarejo. 

Continua após a publicidade

Sempre em companhia do simpático povo local, exploramos o Xixuaú em canoas, caminhamos em lindas praias, pescamos piranhas que viraram ensopado no almoço, colhemos camu-camu do pé para as caipirinhas da happy hour, vimos botos-cor-de-rosa, aves, macacos e jacarés gigantes. 

E, sobretudo, entendemos o significado de turismo sustentável, ao visitar outra escola, a Vivamazônia, em Gaspar, vilarejo em que moram apenas duas famílias, mas que atende a outras pequenas vilas. A escola, fundada pelo escocês Paul Clark, recebe investimentos da Katerre, que apoia ainda outros projetos, como a FAM (Fundação Almerinda Malaquias), em Novo Airão, e emprega gente da região.

A Vivamazônia, em Gaspar (Cindy Wilk/Viagem e Turismo)

Conectado com o quê?

Nesse ponto em que estávamos do Rio Jauaperi, a água é mais cristalina, o solo mais argiloso e as árvores mais altas. Samuel nos explicava isso, ao passo que, na velocidade de um curupira, ia coletando varas, cipós e folhas. Nosso último passeio na selva acabou à beira de uma prainha e, finalmente, entendemos o porquê da coleção de espécimes. 

Não apenas chegávamos ao lugar em que ia acontecer mais um delicioso churrasco como absolutamente tudo – da churrasqueira aos pratos e talheres – foi confeccionado por Samuel. O inacreditável churras à moda indígena ofuscou a atração mais esperada do dia: a hora de se conectar ao primeiro e único wi-fi da viagem, na Vila de Itaquera.

O que fazer nessas horas? Postar no Instagram? Checar e-mails? Mandar nudes? Escrevi uma única mensagem para dizer que estava viva, guardei o celular e fui andar pela vila, entender o que fazia o macaco Nicolau ser tão arredio, por exemplo. Depois de quase uma semana de total desconexão, o real me parecia bem mais real. Teríamos apenas um dia de navegação para voltar a Novo Airão. A vida como conhecemos podia esperar.

Continua após a publicidade

→ Como navegar pelos rios da Amazônia tendo Manaus como ponto de partida

Em barcos adaptados

Explora o Rio Negro para além de Anavilhanas, em que quase não há turismo. São dois barcos: o Jacaré-Açu, testado nesta reportagem, para 16 passageiros, e o Jacaré-Tinga, para até 8. Os dois fazem 6 expedições com saídas regulares e duração de 3 a 7 noites por regiões do Rio Negro. 

Os barcos podem ser fretados para roteiros sob medida. A Katerre é dona do hotel de selva Mirante do Gavião, em Novo Airão, que pode ser combinado aos roteiros. 

Faz cruzeiros de 2 noites pelo Rio Amazonas, de 3 pelo Negro, e de 5, combinando os dois, em sistema all-inclusive. No MV Clipper, barco mais simples, os 16 passageiros ficam em 8 cabines climatizadas, com beliches e banheiro. O MV Premium é mais luxuoso. Tem 16 suítes, com cama de casal (ou duplas), ar-condicionado e banho quente.

São dois roteiros pelo Rio Negro no barco Tucano, para 16 passageiros. O de 6 noites vai até o Rio Jauaperi e o de 4 explora Anavilhanas.

Em um hotel flutuante

Da rede espanhola Iberostar, o hotel flutuante leva 150 pessoas em 75 cabines e é uma opção menos aventureira. Combina comodidades a bordo, como piscina, jacuzzi, spa e até boate, com passeios tradicionais de hotel de selva. O cardápio é regional. Os roteiros entre o Rio Negro e o Solimões são de 3 e 4 noites – ou de 7 na combinação dos dois. 

 

Publicidade